Mesmo com 17 novos empreendimentos previstos e recorde de 640 centros comerciais, o Brasil vive o colapso silencioso do varejo físico, impulsionado por endividamento, juros altos e consumo digital em expansão
Durante décadas, o corte de fitas vermelhas, os sorrisos de lojistas e as fotos de prefeitos em inaugurações simbolizaram prosperidade. Mas essa cena tradicional do varejo brasileiro vem escondendo uma realidade preocupante: o país celebra aberturas enquanto o setor vive seu próprio velório.
O Brasil soma hoje mais de 640 shoppings em 249 municípios — o maior número da história —, mas por trás da aparência de crescimento há uma corrida de sobrevivência.
Em 2024, nove novos centros comerciais foram inaugurados, e 2025 promete mais 17, segundo o censo da Abrasce. A expansão, porém, é ilusória.
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Desde 2019, 26 milhões de visitantes desapareceram dos corredores, reduzindo o fluxo mensal de 502 milhões para 476 milhões. O shopping brasileiro, que já foi símbolo de lazer e consumo coletivo, tenta esconder o encolhimento sob o concreto de novas obras.
O retrato de um setor em declínio
Os números mostram um mercado que finge vitalidade. Com 18 milhões de metros quadrados de área bruta locável e ocupação média de 95%, o setor ainda ostenta bons indicadores aparentes.
A Abrasce prevê crescimento de 1,6% no faturamento em 2025, o que, na prática, não cobre nem a inflação estimada de 3,5% pelo Banco Central. Traduzindo: o volume de vendas cresce apenas no papel, enquanto o poder de compra do consumidor cai.
O Índice de Confiança do Consumidor da FGV fechou setembro de 2025 em 87,5 pontos — um dos menores níveis desde a pandemia.
O subíndice de situação atual caiu para 82 pontos, refletindo a piora nas finanças familiares. De acordo com o IBGE, a renda média real dos trabalhadores cresceu apenas 0,4% em 2024, enquanto o custo de vida avançou quase o dobro.
A Confederação Nacional do Comércio revelou que seis em cada dez famílias encerraram o ano com dívidas acima de 30% da renda mensal.
Os juros no cartão de crédito ultrapassaram 400% ao ano, sufocando o consumo fora das classes mais ricas. E é justamente nelas que o shopping ainda respira: as vendas das classes A e B cresceram 9,9% e 9,4% respectivamente, mostrando um setor sustentado por poucos — enquanto a maioria observa das vitrines.
O disfarce do brilho
Para disfarçar a crise, os shoppings investem em aparência. Cerca de 31% já possuem boulevards gastronômicos e 26% criaram programas de fidelidade. Mas o problema é estrutural.
Os centros comerciais dependem das chamadas lojas âncora — como C&A, Renner e Centauro — que atraem o fluxo de consumidores. Essas lojas pagam aluguéis mais baixos, servindo como isca para as pequenas, as chamadas satélites, que garantem o lucro real. Quando uma âncora fecha, o corredor esvazia, o fluxo some e o shopping implode.
Nos Estados Unidos, esse mesmo modelo colapsou entre 2017 e 2020, com o fechamento de mais de 12 mil lojas de departamento, como Gap e Forever 21. Segundo o Credit Suisse, um quarto dos shoppings americanos estava condenado antes de 2022.
O Brasil, agora, repete o roteiro. Entre as grandes redes de moda nacionais, o lucro médio caiu 9% em 2024, mas novos empreendimentos continuam sendo erguidos.
A mudança do desejo
A revolução digital transformou o comportamento do consumidor. Se antes o sábado era reservado para o “rolê” no shopping, hoje ele é apenas o plano C. O comércio eletrônico sequestrou o desejo de compra. A Amazon, por exemplo, já responde por 37% do varejo digital americano, segundo dados da Morgan Stanley. No Brasil, o e-commerce triplicou entre 2020 e 2024 — saltando de R$ 87 bilhões para R$ 262 bilhões, de acordo com a Nielsen.
Em 2025, 73% dos consumidores já preferem comprar online quando o frete é gratuito ou rápido, segundo a PwC. O shopping perdeu a disputa mais importante da era moderna: a do tempo das pessoas. As plataformas digitais não apenas vendem — elas adivinham o que o cliente quer, entregam com conveniência e substituem o passeio físico por um clique.
O fantasma dos “dead malls”
O fenômeno dos “dead malls” — shoppings com menos de 40% de ocupação — se espalha pelo mundo. Nos Estados Unidos, mais de 300 centros comerciais foram abandonados entre 2017 e 2024, e hoje um em cada cinco está parcial ou totalmente ocioso. Corredores vazios, letreiros piscando e escadas rolantes paradas se tornaram o retrato da obsolescência do consumo coletivo.
No Brasil, o cenário ainda não é terminal, mas a sombra já aparece. Em estados como São Paulo, Rio Grande do Sul e Ceará, há empreendimentos com menos da metade das lojas ativas, segundo o censo da Abrasce. Os sintomas são claros: fluxo reduzido, inadimplência crescente e vitrines cobertas de papel pardo. O shopping, que já foi o “terceiro lugar” entre casa e trabalho, tornou-se um espaço fantasma de concreto e vidro.
O jurista e pesquisador Ronaldo Lemos sintetiza o diagnóstico: os shoppings perderam a disputa mais cara do século XX — a disputa pelo tempo. “Eles falharam em competir com o e-commerce e agora se tornam ruínas elegantes da era pré-digital, quando o consumo era coletivo e o tempo, mais lento”, afirma.
A metamorfose do metro quadrado
A reconfiguração do setor já está em curso. Para sobreviver, os shoppings se transformam em organismos de aluguel de tempo. Clínicas, academias e coworkings ocupam o espaço que antes pertencia às vitrines. Segundo a consultoria Cushman & Wakefield, o número de clínicas médicas em shoppings cresceu 42% entre 2020 e 2024. Já o setor de serviços e conveniência responde hoje por 10,4% das lojas — ultrapassando o varejo de moda em diversas praças regionais.
Redes como Smart Fit, Dr. Consulta e WeWork se tornaram novas “âncoras” dessa era de transição. Cada loja vazia vira uma nova utilidade: escola, consultório, coworking ou restaurante. O shopping deixa de vender produtos para vender tempo, conveniência e necessidade.
A financeirização do colapso
Enquanto o setor se reinventa, o mercado financeiro transforma a crise em lucro. Em 2025, os fundos imobiliários de shoppings valorizaram 18,4%, superando o índice médio de fundos do setor, segundo dados da B3. Gestoras como XP Malls, Riza e Pátria Investimentos enxergam oportunidade onde o varejo vê desespero.
A XP Malls vendeu nove empreendimentos por R$ 1,6 bilhão, reduzindo dívidas e transferindo riscos. A Riza ampliou portfólio, lucrando com a renegociação de aluguéis, e a Pátria investiu R$ 2,5 bilhões em ativos desvalorizados. É o novo jogo do varejo: transformar falência em oportunidade.
A vacância média dos shoppings caiu para 4,8% em junho de 2025, mas não porque o público voltou — e sim porque o espaço ficou caro demais para os pequenos lojistas. O shopping de elite sobrevive; o popular, definha. A JHSF, dona do Cidade Jardim, viu alta de 17% no segundo trimestre, impulsionada por um salto de quase 27% nas vendas do próprio empreendimento. O luxo se tornou o último refúgio da confiança: Rolex, Dior e Prada substituíram C&A e Riachuelo como novas âncoras do consumo.
O novo papel do shopping
Hoje, seis em cada dez brasileiros vão ao shopping não para comprar, mas para jantar, cortar o cabelo ou resolver burocracias. O templo do consumo virou praça de conveniência. Estacionamentos viraram hubs gastronômicos; no Shopping Tijuca, no Rio, o espaço da antiga Forever 21 foi ocupado por restaurantes e uma sala VIP, aumentando o aluguel em 80%.
O endereço é o mesmo, mas o propósito mudou. Os shoppings que entenderam isso estão trocando o luxo pela funcionalidade, o desejo pela utilidade. Os que insistirem em viver apenas do aluguel, ignorando o novo tempo, se tornarão fósseis da era do consumo coletivo.
Da ruína ao recomeço
Toda crise carrega a semente da reinvenção. Os shoppings brasileiros mudam de pele, ainda que à custa de dor e reestruturação. A sobrevivência depende de enxergar que o verdadeiro ativo nunca foi o espaço, e sim o fluxo — de pessoas, ideias e valor. O consumo muda, o cenário muda, o cliente muda. Mas a regra continua a mesma: quem se antecipa à mudança, lidera. Quem ignora, desaparece.



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