Enquanto defende a liderança verde mundial, o Brasil segue entre os maiores consumidores de agrotóxicos do planeta, liberando centenas de substâncias proibidas na Europa e contrariando metas ambientais globais.
Nos últimos anos, o Brasil tem se apresentado ao mundo como protagonista da pauta ambiental. O discurso oficial fala em neutralidade climática até 2050, investimentos bilionários em energia limpa e compromissos firmados em conferências internacionais. Mas, por trás da narrativa verde, dados oficiais revelam uma contradição inquietante: o país que promete liderar a transição sustentável continua sendo um dos maiores consumidores de agrotóxicos do planeta — e segue autorizando o uso de substâncias proibidas em boa parte do mundo desenvolvido.
De acordo com levantamentos do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (IBAMA) e do Observatório dos Agrotóxicos da Fiocruz, o Brasil registrou um recorde histórico de liberações de defensivos agrícolas nos últimos cinco anos. Só entre 2019 e 2024, mais de 2.300 novos produtos químicos foram autorizados para uso comercial, muitos contendo ingredientes ativos proibidos pela União Europeia por riscos à saúde humana e à biodiversidade.
Enquanto países como França, Alemanha e Dinamarca reduzem gradualmente o uso de pesticidas, o Brasil caminha no sentido oposto — e com velocidade alarmante.
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A contradição da sustentabilidade brasileira
O contraste entre discurso e prática ficou evidente nas recentes declarações oficiais sobre sustentabilidade. Em fóruns internacionais, o governo brasileiro tem enfatizado metas climáticas e o avanço de programas como o Plano de Transição Ecológica. No entanto, internamente, o Ministério da Agricultura segue acelerando a liberação de agrotóxicos altamente tóxicos, inclusive aqueles classificados como cancerígenos ou disruptores endócrinos pela Organização Mundial da Saúde (OMS).
O IBAMA mantém uma lista de ingredientes ativos considerados de “risco elevado”, mas diversos deles continuam sendo autorizados sob o argumento de “modernização regulatória” e “harmonização com padrões internacionais”. Na prática, porém, muitos desses padrões coincidem apenas com países de economia agrícola intensiva, e não com as normas de segurança ambiental europeias.
Especialistas alertam que o avanço dessa política pode colocar o país em rota de colisão com seus compromissos internacionais. Segundo a Fiocruz, há “um descompasso evidente entre o discurso ambiental e a prática agrícola”, já que mais de 60% dos agrotóxicos utilizados no Brasil estão proibidos na União Europeia.
Um mercado bilionário em crescimento
O setor de defensivos agrícolas é hoje um dos mais lucrativos do país. Segundo relatório da Associação Nacional de Defesa Vegetal (Andef), o mercado movimentou R$ 89 bilhões em 2024, impulsionado principalmente pela expansão da soja, milho e algodão. O Brasil figura hoje como segundo maior consumidor mundial de agrotóxicos, atrás apenas dos Estados Unidos, conforme dados da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e Agricultura (FAO).
Para produtores, os defensivos são essenciais para manter a competitividade no mercado global, já que pragas tropicais e o clima favorecem o aparecimento de doenças que afetam a produtividade. Porém, críticos da política afirmam que o uso intensivo e desregulado representa uma ameaça crescente à saúde pública e ao meio ambiente.
O Ministério da Saúde, por exemplo, registra aumento nos casos de intoxicação por agrotóxicos em zonas rurais — com mais de 16 mil notificações em 2023. Estudos da Fiocruz e da Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT) apontam correlação entre a exposição crônica e o aumento de doenças neurológicas e câncer em comunidades agrícolas.
Substâncias proibidas lá, liberadas aqui
Entre os produtos mais polêmicos liberados no Brasil estão ingredientes como paraquat, acefato, carbendazim e imidacloprido, todos com restrições severas ou banidos completamente na União Europeia. O caso do carbendazim é emblemático: proibido na Europa desde 2014 por ser potencialmente mutagênico e tóxico para a reprodução, ele ainda é amplamente utilizado em plantações de soja, feijão e frutas no Brasil.
O paraquat, usado como herbicida, chegou a ser proibido pela Anvisa em 2020, mas voltou a ser debatido sob pressão de setores do agronegócio. O imidacloprido, ligado à mortalidade de abelhas e ao colapso de colmeias em diversos países, também segue em uso regular.
Em relatório de 2023, a Human Rights Watch destacou que “a regulação de pesticidas no Brasil favorece a indústria em detrimento da segurança ambiental e humana”, apontando o país como um dos que “mais retrocedem” em políticas de controle.
Exportação verde, consumo tóxico
A contradição se aprofunda quando se observa o destino da produção nacional. O Brasil exporta bilhões em produtos agropecuários certificados como “sustentáveis”, mas muitos deles são cultivados com defensivos que não poderiam ser usados nos próprios países importadores. É o chamado “paradoxo verde”: soja, café e frutas que chegam à Europa com selo de sustentabilidade, mas produzidos sob práticas proibidas por lá.
Em 2023, a Comissão Europeia chegou a discutir a adoção de barreiras sanitárias contra produtos cultivados com agrotóxicos vetados, o que pode impactar diretamente o agronegócio brasileiro — especialmente se novas diretrizes ambientais forem aprovadas pelo Parlamento Europeu.
O Brasil na encruzilhada ambiental
A pergunta que ecoa entre ambientalistas e economistas é direta: como o país pode ser líder na transição verde se não enfrenta sua dependência química no campo?
Para o pesquisador Pedro Côrtes, do Instituto de Energia e Ambiente da USP, “o Brasil vive uma espécie de esquizofrenia ambiental”. Ele explica:
“O país tem um potencial imenso em energias limpas e florestas tropicais, mas continua preso a um modelo agrícola baseado no volume e na química. A sustentabilidade, nesse ritmo, vira apenas marketing.”
Nos bastidores de Brasília, o lobby agroquímico é um dos mais poderosos. Entre as 20 maiores empresas do setor no país estão Syngenta, Bayer, BASF, Corteva e UPL, que dominam mais de 70% do mercado e têm forte influência sobre comissões técnicas e consultivas.
Um futuro verde ainda nebuloso
Apesar das críticas, o governo brasileiro tenta equilibrar discurso ambiental e pressão econômica. Programas de incentivo à agricultura orgânica e à produção agroecológica estão em andamento, mas representam menos de 1% do orçamento total do agronegócio.
Enquanto isso, os números de novos registros de agrotóxicos continuam crescendo. Apenas em 2024, o Diário Oficial da União publicou 423 novas autorizações, incluindo produtos classificados como “altamente perigosos” pela FAO.
A contradição, portanto, persiste: o país que busca liderar a transição ecológica global ainda envenena seus próprios solos e rios com a mesma intensidade de décadas passadas.
E no cenário internacional, essa incoerência tem custo: compromete acordos comerciais, desgasta a imagem do agronegócio brasileiro e ameaça o discurso de sustentabilidade que o Brasil tenta construir.


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