Fernando de Noronha e base aérea de Natal voltam ao radar dos EUA, que negociam uso irrestrito das estruturas com apoio de diplomatas ligados a Trump
Os Estados Unidos continuam sua estratégia – explícita ou disfarçada – de declarar quais territórios soberanos deseja se apropriar, utilizar sob a forma de arrendamento ou por supostos direitos derivados de sua história expansionista. Isso está documentado desde a declaração da própria independência do país. Suas pretensões anexionistas foram praticadas sob diferentes formas: por meio de aquisição (como ocorreu com o Alasca, a Flórida e a Luisiana), por invasão (México), apropriando-se total ou parcialmente de possessões que pertenciam à Espanha após vencer uma guerra no início do século XX (Cuba, Filipinas, Guam e Porto Rico) ou com o argumento de que construíram infraestrutura no passado – como Donald Trump alega agora.
Às bravatas do ex-presidente contra o Canadá, Groenlândia ou o Canal do Panamá, proferidas ao longo deste ano, acaba de se somar a ideia de obter o usufruto de uma porção estratégica do Brasil: a paradisíaca ilha de Fernando de Noronha. A informação foi revelada na última semana por um portal de notícias especializado em Defesa, que descreveu a proposta como uma iniciativa de “uso irrestrito”, baseada em um suposto “direito histórico de retorno operacional” devido aos investimentos feitos pelos EUA durante a Segunda Guerra Mundial no aeroporto local, que agora desejam retomar.
A proposta, segundo o site Defesa Net, envolve também o estratégico aeroporto de Natal, capital do estado do Rio Grande do Norte. A informação, ainda não confirmada oficialmente, menciona que “o governo dos Estados Unidos, por meio de diplomatas ligados ao Partido Republicano, vem negociando informalmente com interlocutores brasileiros” a cessão da ilha e da base aérea naquele estado nordestino.
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Em que consistiria o novo projeto de Trump?
A proposta norte-americana se basearia em três eixos, segundo a página especializada em assuntos de Defesa. O primeiro argumento é de “caráter histórico-operacional”, relacionado aos investimentos financeiros, fornecimento de equipamentos, obras de engenharia e construção de pistas realizados pelos EUA.
O segundo argumento, conforme relata o Defesa Net, é o chamado “direito funcional de retorno”, baseado na ideia de que “os ativos militares financiados pelos EUA em países parceiros – especialmente em contextos de ameaça global ou competição estratégica – poderiam ser ‘reutilizados’ com base em acordos tácitos ou no princípio da reciprocidade hemisférica”.
O site acrescenta que o terceiro elemento invocado pelos EUA “se refere a precedentes contratuais e legislativos”. Mesmo extinto, o Acordo de Assistência Militar entre Brasil e Estados Unidos (1952) ainda é frequentemente citado em documentos técnicos e análises da RAND Corporation, do CSIS e da Heritage Foundation, como referência à tradição de interoperabilidade hemisférica.
O precedente do Panamá
Sob pretexto semelhante, Trump alimentou a ideia de que o controle técnico-operacional do Canal do Panamá deveria retornar às mãos dos EUA. Para isso, pressionou o presidente panamenho José Raúl Mulino, que respondeu: “O Canal é e continuará sendo do Panamá”. O Secretário de Estado norte-americano, Marco Rubio, visitou o país em fevereiro e advertiu as autoridades locais de que “tomará as medidas necessárias” caso não reduzam imediatamente a suposta influência chinesa sobre o canal — questão que se tornou obsessiva para o governo republicano.
De acordo com outra publicação brasileira, ICL Notícias, que cita o Defesa Net, “representantes da missão diplomática dos Estados Unidos no Brasil discutiram, em reuniões privadas, a proposta de retomar as operações nas instalações de Fernando de Noronha e Natal, sob o argumento do ‘direito funcional à reutilização estratégica’”. A publicação acrescenta que o Itamaraty “não se pronunciou sobre o assunto”.
A reportagem também destaca que, tanto em Noronha quanto em Natal, “as duas bases permitiriam aos EUA estabelecer um arco de contenção atlântico que complementaria sua atual rede de bases e pontos de apoio, como a Ilha de Ascensão, a Ilha de São Tomé e as instalações em Dacar”.
A análise avança ao destacar a importância estratégica da região para os EUA no controle do Atlântico entre o Brasil e a África. Um exemplo é a diferença de distância entre a base de Natal, no continente sul-americano, e a ilha declarada Patrimônio da Humanidade pela UNESCO em 2001. São 360 quilômetros, contra 1.540 quilômetros da Ilha de Ascensão até a costa do Golfo da Guiné. O governo Trump economizaria muitos milhões de dólares se sua proposta fosse bem-sucedida.
O principal obstáculo
No entanto, a operação, já divulgada pelo Defesa Net e pelo ICL Notícias, enfrenta um obstáculo quase intransponível. A Constituição Federal de 1988 – promulgada após o fim da última ditadura militar – em seu artigo 49, inciso I, proíbe expressamente “a transferência de instalações militares a forças estrangeiras sem autorização prévia do Congresso Nacional e formalização por decreto legislativo”.
Fernando de Noronha, localizada no estado de Pernambuco – o mesmo onde nasceu o presidente Lula, na cidade de Garanhuns – é um arquipélago vulcânico com 26 km², composto por 21 ilhas e ilhotas. Durante a Segunda Guerra Mundial, em 1944, o Brasil entregou a gestão do aeroporto local à Marinha dos Estados Unidos. Mas, ao fim do conflito, retomou o controle da área.
Sua localização é considerada estratégica para a vigilância oceânica, podendo abrigar “radares de superfície marítima e equipamentos ELINT/SIGINT, destinados ao monitoramento de rotas navais e aéreas”, segundo o portal que revelou a proposta norte-americana. A ilha também possui capacidade para operações de aeronaves de vigilância marítima e drones de média altitude e longa autonomia, como os MQ-9 Reaper e SeaGuardian.
A base aérea de Natal oferece capacidades militares semelhantes. Ela apresenta condições ideais para reabastecimento aéreo, evacuação médica, mobilização rápida de forças de resposta e apoio a missões na costa oeste da África, Caribe e norte da América do Sul, de acordo com o ICL Notícias.
Tudo indica que não se trata apenas de uma questão de segurança hemisférica para os EUA. O controle de Fernando de Noronha pode ter motivações ligadas à espionagem na região. O cerne da questão foi sintetizado em uma manchete da influente revista The Economist, publicada em 4 de julho de 2024: “A presença da China na América Latina se expandiu dramaticamente”. O intercâmbio comercial bilateral entre China e países latino-americanos saltou de 18 bilhões de dólares em 2002 para 480 bilhões em 2023. Atualmente, a China é o maior parceiro comercial da América do Sul.