Bancos brasileiros enfrentam dilema entre cumprir sanções impostas pelos Estados Unidos e respeitar decisões do Supremo Tribunal Federal. A disputa pode comprometer o acesso ao dólar, operações internacionais e salários de empresas em 2025.
Em meio ao agravamento da crise diplomática entre Brasil e Estados Unidos, os maiores bancos do país entraram no centro de uma disputa que mistura finanças, direito e geopolítica.
A aplicação da Lei Magnitsky ao ministro Alexandre de Moraes colocou instituições como Banco do Brasil, Itaú, Bradesco, Santander e BTG Pactual diante de um conflito: seguir as sanções definidas pelo Ofac, do Tesouro americano, ou atender ao entendimento do ministro Flávio Dino, do STF, de que leis e decisões estrangeiras só valem no país após validação por acordos internacionais ou pela própria Justiça brasileira.
No limite, o impasse pode afetar acesso ao dólar, operações de comércio exterior, folhas de pagamento e captação em 2025. As informações foram originalmente publicadas pelo jornal BBC News Brasil.
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No dia 2 de setembro, na abertura do julgamento do ex-presidente Jair Bolsonaro no Supremo, cinco grandes bancos receberam do Departamento do Tesouro dos EUA uma carta com perguntas sobre como estavam aplicando a Lei Magnitsky no caso de Moraes.
O documento do Ofac buscou detalhar medidas de compliance adotadas e verificar se as instituições criaram filtros para bloquear transações relacionadas ao alvo da sanção.
Como a lei dos EUA atinge bancos de outros países
A jurista Camila Villard Duran, especialista em direito econômico e regulação do mercado monetário, explicou em entrevista ao jornal BBC News Brasil que o alcance extraterritorial da Magnitsky não se dá por tratado, mas por infraestrutura financeira.
Segundo ela, “o mecanismo é puramente financeiro: toda entidade que usa o dólar como moeda internacional e a infraestrutura do mercado americano para transações internacionais fica sujeita a essa lei”.
Essa dependência é relevante no Brasil, onde bancos mantêm correspondentes nos EUA ou subsidiárias em território americano para liquidar operações externas.
De acordo com a especialista, o Ofac supervisiona o cumprimento das ordens executivas e pode requisitar informações, exigir procedimentos e, se entender que houve descumprimento, aplicar multas.
O monitoramento inclui casos em que a pessoa sancionada detenha mais de 50% de participação em empresas, o que amplia a necessidade de filtragem nas instituições financeiras.
Dólar, Swift e a infraestrutura sob influência americana
O BBC News Brasil também destacou que o Swift, sistema de mensagens financeiras com sede na Bélgica, é o canal por onde trafegam as ordens de pagamento entre bancos.
Embora seja apenas o “mensageiro”, as liquidações costumam passar pelo dólar como moeda intermediária.
Além disso, a Clearing House de Nova York opera o sistema Chips, que compensa transações internacionais e está submetido à legislação dos EUA.
Para o Brasil, essa arquitetura significa que boa parte das exportações, importações e emissões de dívida no exterior circula por redes ancoradas em normas e supervisão americanas.
Essa engrenagem explica por que a sanção, ainda que decidida em Washington, pode produzir efeitos no Rio ou em São Paulo.
Sem acesso fluido ao dólar e aos sistemas de compensação, bancos enfrentam obstáculos para pagar importações, receber exportações e refinanciar dívidas em moeda forte.
O impasse jurídico no Brasil
A decisão do ministro Flávio Dino surgiu em outro processo, mas funcionou como recado institucional: decisões estrangeiras só se incorporam ao ordenamento nacional pelos ritos previstos na Constituição.
O entendimento, encaminhado a bancos e à Febraban, sinaliza o risco legal de aplicar diretamente uma norma americana no Brasil sem internalização.
Na prática, as instituições se veem pressionadas por dois polos.
De um lado, precisam obedecer às regras do Ofac para preservar o acesso às redes internacionais.
De outro, convivem com a possibilidade de o STF questionar a utilização de sanções estrangeiras como fundamento para medidas no sistema financeiro doméstico.
A corte, historicamente, também pondera efeitos sistêmicos de decisões — como ocorreu em julgamentos ligados a planos econômicos e ao Fundo Garantidor de Crédito —, o que pode influenciar futuros posicionamentos.
Multas, bloqueios e o fator político
As cartas do Ofac são etapa de supervisão.
Se a agência considerar insuficientes as respostas, pode impor multas proporcionais às transações — como em casos envolvendo empresas com contas de pessoas sancionadas.
Em cenário extremo, existe a possibilidade de restringir o acesso de bancos ao sistema financeiro americano, hipótese vista como de alto impacto por seu potencial de paralisar pagamentos internacionais.
Segundo a reportagem da BBC News Brasil, a jurista destaca que o momento geopolítico é particular. Em sua avaliação, há uso político de instrumentos jurídicos, o que amplia incertezas.
A discussão, assim, não se limita à análise técnica de riscos; envolve leitura de contexto e de pressões diplomáticas.
Soberania monetária e a dependência do dólar
Villard Duran ressalta que a soberania monetária é atributo dos Estados, mas sofre restrições concretas na economia globalizada.
Países cuja moeda não é amplamente aceita internacionalmente dependem de recursos e infraestrutura de terceiros para transacionar no exterior.
“Nossa soberania monetária se reduz: o real vale plenamente dentro do país, mas, fora dele, o Brasil fica submetido às amarras do sistema financeiro global”, afirma.
No caso brasileiro, a necessidade de captar e liquidar em dólar limita a margem de manobra em crises externas.
A vulnerabilidade ficou mais evidente após a eleição de Donald Trump e a escalada de tensões com Brasília.
Pix, Drex e a construção de alternativas
Apesar das limitações, a especialista vê avanços domésticos.
Para ela, o Pix representa uma infraestrutura pública que reforça a autonomia do país nos pagamentos internos.
“A Europa começa a defender o euro digital com o mesmo argumento: assegurar soberania sem depender de entidades privadas submetidas à lei americana”, afirmou à BBC News Brasil, ao apontar que o Brasil saiu na frente com o Pix.
Novos passos, porém, dependem de cooperação internacional.
Iniciativas como o Drex (real digital) e projetos do BIS, a exemplo do Nexus, que conecta sistemas de pagamentos instantâneos de diferentes países, indicam caminhos para transações transfronteiriças fora de redes privadas tradicionais.
Experiências regionais, como o Sistema de Pagamentos em Moeda Local com Argentina e Uruguai, ainda são incipientes e exigem escala e governança.
O que muda para clientes e empresas
No curto prazo, não há indicação de risco imediato para depósitos, crédito e operações de varejo.
O Banco Central tem histórico de supervisão reconhecido e o FGC funciona como almofada em eventos de estresse.
Em crises anteriores, como em 2008 e 2020, o Brasil contou com swaps do Federal Reserve para aliviar a falta de dólares.
A dúvida, hoje, é se apoios desse tipo se repetiriam em um ambiente de tensão política.
Mesmo com arcabouço robusto, a falta de liquidez em dólar no mercado global encarece e restringe operações para empresas que importam insumos, exportam bens ou mantêm dívidas em moeda estrangeira.
O efeito pode atingir salários pagos a trabalhadores alocados em projetos dolarizados, cadeias de exportação e captações no exterior, caso o acesso a correspondentes e sistemas sob jurisdição americana seja reduzido.
Estratégia para reduzir o risco
A médio e longo prazo, a tarefa é diminuir a exposição a um único polo financeiro.
Isso envolve ampliar arranjos multilaterais, diversificar moedas de liquidação e fortalecer infraestruturas públicas de pagamento.
A jurista sintetiza o desafio: “É urgente construir uma política mais robusta, com recursos humanos e financeiros, para desenvolver alternativas”.
Ao mesmo tempo, soluções de contingência no curto prazo — como arranjos que evitem a desbancarização de autoridades atingidas por sanções — buscam mitigar o choque sem paralisar o sistema.
Com bancos pressionados por regras internacionais e por limites domésticos, e um tabuleiro geopolítico mais volátil, qual deve ser a prioridade do Brasil: blindar o presente com medidas emergenciais ou acelerar uma arquitetura financeira que reduza a dependência do dólar nos próximos anos?