Argentina enfrenta décadas de hiperinflação e sucessivas reformas monetárias, com cortes de zeros e mudanças de moedas, mas salários corroídos e poupanças destruídas mantêm a confiança econômica em permanente crise.
Se a Venezuela é lembrada por ter cortado 14 zeros do bolívar em pouco mais de uma década, a Argentina vive há quatro décadas uma montanha-russa monetária que parece não ter fim. O país vizinho, que já foi uma das economias mais ricas do mundo, acumulou a remoção de 13 zeros de sua moeda desde os anos 1970 e mudou de denominação ao menos cinco vezes. Apesar de tantas reformas, a inflação continua sendo um fantasma permanente na vida dos argentinos. Em 2023, a taxa anual ultrapassou 200%, a maior em três décadas, corroendo salários, destruindo poupanças e alimentando um ciclo de desconfiança que se repete geração após geração.
A era do Peso Ley e o início dos cortes
Na década de 1970, a Argentina já convivia com inflação crônica. O Peso Ley 18.188, introduzido em 1970, logo perdeu força diante de déficits fiscais e crises políticas. Em 1983, no final da ditadura militar, a inflação anual ultrapassava 300%, e a moeda começava a perder totalmente sua função de reserva de valor.
O Peso Argentino (1983–1985)
Para tentar conter o caos, o governo de Raúl Alfonsín criou o Peso Argentino em 1983, cortando 4 zeros do Peso Ley. Na prática, 10.000 pesos Ley se tornaram 1 peso argentino.
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A medida, porém, não teve efeito duradouro. Sem disciplina fiscal e com sucessivas emissões de moeda para financiar o Estado, a inflação disparou novamente. Apenas dois anos depois, já se falava em hiperinflação.
O Austral (1985–1991)
Em 1985, Alfonsín lançou o Plano Austral, que substituiu o peso argentino pelo Austral, cortando 3 zeros. Assim, 1.000 pesos argentinos viraram 1 austral.
No início, o plano trouxe alívio: congelamento de preços, cortes de gastos e apoio do FMI ajudaram a reduzir temporariamente a inflação. Mas a falta de confiança minou o programa, e a hiperinflação voltou com força no final dos anos 1980.
Em 1989, a inflação anual bateu 5.000%, uma das maiores já registradas fora de contextos de guerra.
O Peso Convertible (1992–2001)
Com a economia à beira do colapso, o presidente Carlos Menem e o ministro da Economia Domingo Cavallo adotaram o Plano de Convertibilidade, criando o Peso Convertible em 1992. A moeda substituiu o austral com corte de 4 zeros: 10.000 australes se tornaram 1 peso.
O diferencial dessa vez foi atrelar a nova moeda ao dólar americano em paridade de 1 para 1, garantindo que cada peso emitido tivesse lastro em reservas internacionais.
No início, a medida foi um sucesso: a inflação despencou, os preços se estabilizaram e o consumo disparou. A Argentina voltou a atrair investimentos. Mas a paridade artificial tornou a economia pouco competitiva e, diante da crise de 2001, o sistema ruiu.
O Peso atual (2002 em diante)
Após o colapso da convertibilidade, a Argentina manteve o nome peso, mas desatrelado do dólar. Desde então, a moeda passou por ciclos de desvalorização constantes.
Hoje, mesmo sem novos cortes de zeros formais, a perda de valor é evidente. Em 2024, o peso argentino se desvalorizava diariamente no câmbio paralelo, conhecido como “dólar blue”, usado por milhões de argentinos para escapar da inflação oficial.
O total de zeros cortados
Somando todas as reformas:
- 1970: Peso Ley 18.188
- 1983: Peso Argentino (–4 zeros)
- 1985: Austral (–3 zeros)
- 1992: Peso Convertible (–4 zeros)
- 2002: Peso atual (herança do Convertible)
No total, foram 13 zeros removidos em pouco mais de 40 anos. Para se ter ideia, 10 trilhões de pesos ley de 1970 equivalem a apenas 1 peso atual.
A inflação hoje da Argentina
Em 2023, a inflação anual ultrapassou 211%, segundo o Instituto Nacional de Estatística e Censos (INDEC), a maior em mais de 30 anos. Em 2024 e 2025, mesmo com promessas de estabilização e reformas, a Argentina segue entre os países com maior inflação do mundo.
Os salários reais caem, as poupanças evaporam e a população busca refúgio no dólar. O Banco Central até emite notas cada vez maiores — recentemente, de 2.000 pesos —, mas que não resolvem o problema estrutural.
As consequências sociais
O ciclo de inflação e desvalorização traz impactos profundos:
- Dolarização informal – a maioria dos contratos, desde aluguel até a compra de imóveis, é feita em dólar.
- Perda de confiança no sistema bancário – a lembrança do confisco de depósitos em 2001 ainda assombra a população.
- Custo de vida insustentável – famílias veem o salário perder valor antes do fim do mês.
- Fuga de cérebros – milhares de jovens profissionais deixam o país em busca de estabilidade em outros destinos, como Espanha, Chile e Estados Unidos.
Para os argentinos, a hiperinflação não é apenas um capítulo do passado, mas uma ameaça constante. A memória coletiva dos anos 1980 e 2001 se mistura com a realidade atual, em que ir ao supermercado é uma experiência de incerteza: os preços mudam de semana em semana.
E, mesmo após 13 zeros apagados e cinco mudanças de moeda, a pergunta segue no ar: até quando a Argentina resistirá sem uma nova reforma monetária?
A história da moeda argentina é um retrato da fragilidade econômica de um país que já esteve entre os mais ricos do planeta. Em apenas 40 anos, perdeu 13 zeros, mudou cinco vezes de denominação e ainda assim não conseguiu domar a inflação.
Hoje, o peso é mais um símbolo de desconfiança do que de soberania. Para a população, resta conviver com o dólar como moeda paralela e esperar que uma nova geração de líderes consiga, enfim, quebrar o ciclo.
E você, leitor: imaginaria viver em um país onde o dinheiro muda de nome a cada década, perde zeros constantemente e nunca consegue manter valor?