Softwares de monitoramento avançaram durante o home office e agora dominam também escritórios presenciais. A prática promete ganhos de produtividade, mas levanta questões jurídicas, éticas e econômicas que estão em debate entre especialistas e empresas.
A demissão de centenas de funcionários do Itaú por alegada baixa produtividade em trabalho remoto, noticiada em setembro, trouxe para o centro do debate um fenômeno que já vinha se consolidando desde a pandemia: o uso de softwares de monitoramento para medir atividade e desempenho, tanto no home office quanto no presencial.
Pesquisas de mercado citadas por consultorias apontam que a maior parte das grandes corporações já adota algum grau de rastreamento digital, e ferramentas mais sofisticadas conseguem registrar desde aberturas de aplicativos até toques de teclado e períodos de inatividade.
Ainda que a promessa seja de eficiência, especialistas ouvidos por fontes do setor alertam para custos financeiros, impactos organizacionais e riscos jurídicos que crescem na mesma velocidade da tecnologia.
-
Trump anuncia tarifas de 100% sobre filmes estrangeiros e promete mudar indústria nos EUA
-
Embraer vira referência nos EUA e caças Super Tucano com sensores infravermelhos, visão noturna e comunicação segura serão usados por pilotos treinados nos EUA
-
Vai doer no bolso: mensalidade escolar em 2026 terá reajuste médio de 9,8%, mais que o dobro da inflação prevista pelo Banco Central
-
Imóvel de leilão do Minha Casa Minha Vida, arrematado por R$ 103 mil, é reformado e vendido por R$ 180 mil, garantindo lucro de R$ 49,9 mil
O episódio envolvendo o banco acendeu alertas em departamentos de RH, jurídico e compliance sobre limites, proporcionalidade e transparência na coleta de dados.
Como funciona o monitoramento digital nas empresas
O pacote de ferramentas disponíveis evoluiu rapidamente.
Há softwares capazes de logar cliques, pressionamentos de teclas, tempo de tela ativa, uso de programas corporativos, acessos a e-mails e navegação.
Painéis e dashboards reúnem indicadores em tempo real e alimentam KPIs usados em avaliações e decisões de gestão.
Segundo Paulo Castello, da Fhinck, a principal mudança é que “as empresas passaram a usar dados para tomar decisões mais embasadas”, o que inclui promoções e, em casos extremos, desligamentos.
Essa camada de mensuração não se restringe ao remoto.
“A localização do funcionário não altera a capacidade técnica da empresa de fiscalizar o uso do e-mail corporativo, a navegação na internet ou a utilização de programas de trabalho”, afirma Stephanie Almeida, do Poliszezuk Advogados.
Na avaliação dela, o retorno ao escritório não deve interromper o monitoramento, apenas mudar seu foco.
Custos e impacto econômico da vigilância digital
Além do investimento em cultura e processos, há a fatura mensal de tecnologia.
Licenças de vigilância digital variam, em média, de R$ 50 a R$ 160 por colaborador ao mês, patamar que pesa mais no orçamento de PMEs do que em grandes grupos.
Paralelamente, o mercado global de softwares de produtividade vem expandindo a receita e mantém o segmento de escritório como motor do crescimento, com cifras bilionárias estimadas por plataformas de dados de mercado.
A discussão, porém, não se esgota no preço.
Organizações relatam ganhos de controle e padronização de processos; por outro lado, estudos acadêmicos recentes associam vigilância intensiva a estresse, queda de satisfação e menor autonomia, fatores que podem impactar o desempenho.
Em termos práticos, o dilema é claro: paga-se mais para monitorar, mas nem sempre o retorno vem na forma de eficiência líquida.
O que diz a legislação trabalhista e a LGPD
No direito do trabalho brasileiro, não existe expectativa de privacidade absoluta no ambiente laboral.
O advogado Fábio Monteiro, do Pellegrina e Monteiro, lembra que são possíveis a fiscalização do local, revistas e o controle de meios telemáticos, como e-mails e celulares profissionais.
“Outros países, como Portugal, incorporaram suas legislações de proteção de dados aos códigos trabalhistas, o que não ocorreu ainda no Brasil”, afirma.
A LGPD impõe balizas.
Fábio Chong de Lima, do L.O. Baptista, recomenda que a empresa forneça os equipamentos, para que o monitoramento se restrinja a dispositivos corporativos e siga três pilares: finalidade legítima, transparência e necessidade.
A coleta não pode acessar mensagens privadas ou dados alheios ao trabalho sem base legal, e monitorar áudio ou vídeo no domicílio do colaborador é considerado altamente intrusivo.
Nos tribunais, ainda falta jurisprudência consolidada sobre a extensão do controle.
Exageros podem resultar em indenização por danos morais, ações trabalhistas e questionamentos com base na LGPD.
Em paralelo, no exterior, há movimentos de regulação mais explícitos: Nova York exige notificação formal aos empregados sobre práticas de monitoramento, e autoridades europeias reforçam exigências de transparência, minimização e avaliação de impacto.
O teletrabalho como extensão do ambiente laboral
Do ponto de vista jurídico, o teletrabalho é extensão do meio ambiente laboral.
Cabe ao empregador fornecer ferramentas e estabelecer regras claras por contrato ou política interna.
Monteiro pontua que as métricas de produtividade são passíveis de acompanhamento, desde que restritas ao contexto de trabalho.
Em caso de abuso, o empregado pode solicitar acesso aos dados, contestar metodologias, acionar sindicato e buscar a Justiça do Trabalho.
Para a advogada Stephanie Almeida, três princípios devem nortear qualquer política:
- Finalidade claramente definida.
- Proporcionalidade na técnica usada.
- Transparência com termo de ciência ou aditivo contratual.
Sem comunicação prévia, o dado pode ser inutilizado como prova e gerar passivo.
Como o trabalhador deve se proteger
Regra básica: equipamento corporativo para fins corporativos.
O primeiro passo é conhecer a política interna e agir com a ciência de que a atividade em dispositivos da empresa pode ser fiscalizada.
Em caso de percepção de violação de privacidade ou coleta excessiva, a orientação é guardar evidências, procurar assistência jurídica e, se houver, dialogar via representante sindical.
Governança e ética no uso da tecnologia
Especialistas em gestão defendem tirar o tema do campo estritamente técnico.
Para Sérvulo Mendonça, da holding SM, o monitoramento precisa alinhar compliance, LGPD e ética.
O ponto crítico, diz ele, é se o colaborador foi informado e como os dados são usados.
A psicóloga Daniele Marques, da Protagonist, vê uma maturidade maior no uso de dashboards e indicadores, mas avalia que o sucesso depende de combinar dados com uma interface humana, transformando métricas em feedbacks objetivos e práticas de desenvolvimento.
Riscos técnicos e ameaças internas
A superfície de ataque não é teórica.
Incidentes internos continuam relevantes, e especialistas estimam que uma parcela importante das violações decorre de funcionários, terceirizados ou executivos, por dolo, erro ou negligência.
No Brasil, o custo médio de uma violação alcançou R$ 7,19 milhões em estudos recentes, pressionando organizações a reforçar controles, inclusive nos processos de desligamento.
“Sem planos de transição e monitoramento adequado, quem sai pode se tornar ameaça latente”, afirma Thiago Guedes, da DeServ.
Casos de alta repercussão envolvendo fraudes com Pix e suposta participação de insiders ilustram a zona cinzenta entre erro humano e má-fé.
O recado para as empresas é duplo: calibrar o monitoramento para mitigar risco sem cruzar a linha da invasão de privacidade.
O impacto do caso Itaú na cultura corporativa
O episódio do Itaú virou símbolo de uma nova disputa corporativa: como medir desempenho sem reduzir trabalho a telemetria de cliques e teclas.
Para o headhunter Diego Rondon, o recado é que a “era da ingenuidade” sobre presença e visibilidade acabou, mas produtividade requer ambiente, clareza e autonomia.
Sem isso, diz ele, a confiança se corrói e as organizações perdem gente boa justamente quando precisam reter talentos.
A questão, portanto, deixa de ser se a tecnologia pode monitorar e passa a ser como e para quê monitorar.
Com regras públicas, métricas aderentes à função e governança efetiva, empresas tendem a reduzir a litigiosidade e maximizar benefícios.
Falta responder a uma pergunta que o caso escancarou: é possível escalar o uso de dados para gestão sem minar a confiança que sustenta a produtividade de longo prazo?