Rússia troca SWIFT por SPFS e intensifica comércio com China, Índia e Irã em rublo e yuan, desafiando o domínio do dólar no setor de energia global.
Sob forte pressão de sanções ocidentais desde 2022, a Rússia vem reformulando silenciosamente sua arquitetura financeira internacional. A exclusão parcial do sistema SWIFT e as restrições impostas por países do G7 aceleraram uma estratégia já em andamento: substituir o dólar por moedas locais e criar mecanismos alternativos para liquidar transações internacionais. O resultado? A Rússia ampliou o uso do rublo e do yuan em acordos bilaterais, principalmente com China, Índia e Irã — e já realiza vendas de petróleo fora da esfera do dólar, um movimento que representa um abalo no domínio monetário dos Estados Unidos.
SPFS: a alternativa russa ao SWIFT
O primeiro passo para a independência financeira veio ainda em 2014, após as sanções do Ocidente pela anexação da Crimeia. O Banco Central da Rússia desenvolveu o SPFS (Sistema de Transferência de Mensagens Financeiras) como substituto doméstico ao SWIFT. Inicialmente restrito ao mercado interno, o SPFS hoje já está conectado a cerca de 550 bancos e instituições financeiras, incluindo entidades em 20 países.
O objetivo russo não é apenas escapar das sanções, mas construir uma malha financeira alternativa, capaz de operar globalmente sem depender de redes sob supervisão ocidental. A Rússia também busca conectar o SPFS ao sistema chinês CIPS, voltado a transações em yuan, consolidando um canal sino-russo de pagamentos fora da órbita do dólar e do euro.
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Comércio com China: yuan e rublo dominam
O impacto mais visível dessa mudança ocorre no comércio entre Rússia e China. Dados de 2024 mostram que mais de 90% das transações bilaterais já são realizadas em moedas locais, com o yuan ganhando protagonismo.
Antes da guerra na Ucrânia, menos de 5% desse comércio era feito fora do dólar. Agora, o yuan responde por maior parte das importações chinesas, enquanto o rublo cobre boa parte das exportações russas.
Além de reforçar os laços econômicos entre os dois países, essa desdolarização tem implicações estratégicas: reduz a eficácia de futuras sanções, cria um precedente para outras nações e abre espaço para novos polos de poder monetário.
Petróleo com Índia, China e Irã sem dólar
Outro elemento-chave dessa virada financeira é o comércio de petróleo. Tradicionalmente dominado por contratos em dólar (o chamado petrodólar), o setor começa a dar sinais de fragmentação.
- Com a Índia, a Rússia já utiliza um sistema de compensação parcial em rúpias e rublos. A crescente dependência indiana do petróleo russo, oferecido com grandes descontos, forçou a criação de mecanismos financeiros alternativos, que incluem acordos com bancos locais e uso limitado de moedas conversíveis.
- Com o Irã, outro país alvo de sanções, a Rússia avança em acordos energéticos com pagamento em moedas locais e, em alguns casos, em criptomoedas ou ativos lastreados em ouro, como o stablecoin em desenvolvimento entre os dois países.
- Com a China, os contratos futuros de petróleo em yuan (petroyuan) já são utilizados desde 2018, mas ganharam força após 2022. Em 2025, uma parcela significativa das exportações russas de petróleo para Pequim foi quitada diretamente em yuan, com liquidação via CIPS.
Esses movimentos reforçam uma tendência de regionalização dos fluxos de energia, com países buscando resiliência cambial e autonomia estratégica frente à pressão financeira do Ocidente.
Digital ruble e criptomoedas: nova fase da desdolarização
Para tornar o sistema ainda mais robusto, a Rússia lançou em 2023 o rublo digital, sua própria moeda digital emitida pelo Banco Central (CBDC). A intenção é facilitar pagamentos diretos entre bancos centrais aliados, além de acelerar transações entre empresas russas e estrangeiras sem passar por intermediários tradicionais.
Além disso, empresas russas já estariam usando criptomoedas como Bitcoin e Tether (USDT) para intermediar pagamentos internacionais em setores estratégicos, como energia e fertilizantes. Em alguns casos, a conversão yuan–cripto–rublo seria mais viável do que operar com bancos sob risco de bloqueio.
Essa diversificação de canais — rublo digital, SPFS, yuan, criptomoedas — mostra que a Rússia não aposta em um único caminho, mas na construção de um ecossistema financeiro paralelo, resiliente e descentralizado.
BRICS Pay, “BRICS Bridge” e a criação de novos blocos financeiros
No contexto do BRICS, a Rússia também tem promovido o conceito de uma infraestrutura de pagamentos compartilhada, apelidada de “BRICS Bridge”. Trata-se de uma proposta para conectar sistemas locais de pagamentos dos países membros e permitir liquidações em moedas nacionais.
Embora ainda não tenha o apoio irrestrito da China e da Índia, a ideia avança como um embrião de alternativa ao SWIFT e ao dólar, especialmente útil entre países sancionados ou desconfiados da hegemonia ocidental. Na cúpula dos BRICS de 2025, Putin afirmou que mais de 90% das transações da Rússia com membros do bloco já ocorrem em moedas locais.
Esse dado evidencia que, mesmo sem uma moeda única, os BRICS já operam na prática como um sistema financeiro multipolar, baseado na integração direta entre moedas nacionais.
O impacto global: dólar enfraquecido, novas esferas de influência
Embora o dólar continue dominante nas reservas internacionais e nos contratos de commodities, a estratégia russa representa uma ameaça real à centralidade absoluta da moeda norte-americana. A fragmentação do sistema financeiro global — com a emergência de polos como China, Rússia, Índia e Irã — pode gerar um novo cenário geoeconômico, onde vários sistemas coexistem e competem.
Esse enfraquecimento relativo do dólar tem implicações profundas:
- Sanções perdem eficácia à medida que países constroem alternativas;
- Reservas em moedas locais ganham valor geopolítico;
- Fluxos de capital migram para novas plataformas, como as redes digitais estatais.
A postura da Rússia, nesse contexto, é pioneira — e serve de exemplo para outros países que buscam mais autonomia em seus laços comerciais e financeiros.