Crise na indústria brasileira não é acidente — entenda como tarifas, dependência externa e ausência de estratégia agravaram o cenário
Milhares de trabalhadores estão sendo demitidos em diferentes regiões do Brasil em um fenômeno que já não pode ser considerado isolado ou pontual. De fábricas automotivas a indústrias madeireiras e alimentícias, o país enfrenta uma onda de cortes que revela falhas estruturais, efeitos globais e decisões políticas internas que se entrelaçam em uma tempestade perfeita.
Modelo econômico restritivo: o fator interno que sufoca as indústrias
Uma das causas mais diretas da recente onda de demissões é o modelo econômico adotado pelo Ministério da Fazenda em 2025. Na tentativa de alcançar a meta de déficit fiscal zero, o governo promoveu cortes drásticos em subsídios, incentivos e programas de apoio à indústria, gerando um efeito dominó entre empresas de diferentes portes.
Um dos mais criticados foi o corte de recursos do Programa Rota 2030, que oferecia estímulos fiscais à inovação no setor automotivo. A suspensão parcial do programa coincidiu com o anúncio da General Motors de reduzir o quadro de funcionários em três fábricas no estado de São Paulo, o que gerou protestos de sindicatos e paralisações nas linhas de produção.
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O mesmo impacto foi sentido com a redução de recursos do Proex (Programa de Financiamento às Exportações), que deixou diversas empresas calçadistas sem apoio para operar nos mercados externos. Segundo a Abicalçados, cerca de 8 mil empregos estão em risco imediato devido à perda de competitividade causada pela falta de financiamento. A região mais afetada é o Rio Grande do Sul, historicamente dependente da indústria do calçado.
Especialistas do setor apontam que, sem uma política industrial clara e ativa, as medidas fiscais adotadas acabam pressionando ainda mais os setores produtivos, que já enfrentam baixa competitividade global.
Reforma tributária e paralisia empresarial
A essa política restritiva soma-se a insegurança jurídica provocada pela reforma tributária, cujas fases de implementação estão gerando confusão entre os empresários. A falta de clareza sobre as alíquotas finais, os mecanismos de compensação e a repartição entre os estados está paralisando decisões de investimento em setores-chave como a agroindústria, a logística e a indústria alimentícia.
O Instituto Brasileiro de Planejamento Tributário (IBPT) alertou que o novo Imposto sobre Bens e Serviços (IBS) pode representar um aumento efetivo da carga tributária para a indústria de transformação, o que já levou a reestruturações.
Um caso simbólico foi o da multinacional ADM (Archer Daniels Midland), que em julho anunciou o fechamento de sua fábrica de ração animal em Três Corações (MG), deixando mais de 900 trabalhadores sem emprego. Embora a empresa tenha atribuído a decisão a uma reestruturação global, fontes do setor destacam que a instabilidade fiscal brasileira foi um fator considerado.
Estados Unidos impõem tarifas e agravam o cenário
A situação brasileira se agravou de forma significativa em 2025, após uma série de medidas tarifárias impostas pelos Estados Unidos durante o segundo mandato de Donald Trump. Em 2 de abril, a Casa Branca anunciou a criação das chamadas “tarifas do Dia da Libertação”, que estabeleciam uma tarifa base de 10% sobre todas as importações, com acréscimos específicos para países considerados “concorrência injusta” — como o Brasil. Essas taxas foram inicialmente suspensas por 90 dias para negociações diplomáticas.
No entanto, diante do avanço de processos judiciais no Brasil contra o ex-presidente Jair Bolsonaro — aliado de Trump —, o governo norte-americano decidiu retaliar politicamente. Em 9 de julho de 2025, Trump assinou uma ordem executiva declarando emergência econômica nacional e impondo uma tarifa adicional de 40% sobre produtos brasileiros, atingindo setores como alimentos processados, suco de laranja, carne de frango, calçados, móveis e bens de capital.
A nova medida elevou o total de tarifas a 50% para diversas categorias de exportações brasileiras, provocando uma crise imediata em setores altamente dependentes do mercado norte-americano. Embora alguns produtos estratégicos — como aeronaves civis e materiais hospitalares — tenham recebido isenções, o impacto geral foi devastador para indústrias como a madeireira, de papel e de celulose, que viram sua competitividade internacional ser praticamente anulada.
Essas tarifas, que se somam a outras já em vigor por questões sanitárias ou trabalhistas, afetam exportações superiores a US$ 3,2 bilhões por ano. Segundo a Confederação Nacional da Indústria (CNI), apenas o setor calçadista pode perder entre 15% e 18% de suas vendas externas em 2025.
Apesar dos pedidos de diálogo por parte do Itamaraty na OMC, não foram adotadas medidas de proteção emergencial para os setores mais afetados. Como consequência, empresas com forte dependência do mercado norte-americano recorreram a cortes imediatos de pessoal, principalmente na região Sul.
O rastro silencioso da pós-pandemia
O terceiro fator que ajuda a explicar a atual onda de demissões no Brasil tem raízes mais profundas: a herança de uma recuperação pós-Covid mal distribuída. Embora o país tenha crescido 2,9% em 2023 e 1,7% em 2024, os benefícios se concentraram em setores primários como o agronegócio e o sistema financeiro, enquanto a indústria de transformação nunca retomou os níveis pré-pandemia.
Muitas fábricas fizeram grandes investimentos entre 2021 e 2022 prevendo uma expansão do consumo interno que não se concretizou. A alta dos juros, a queda no poder de compra da classe média e a explosão do crédito informal limitaram a demanda e geraram capacidade ociosa.
O Instituto de Estudos para o Desenvolvimento Industrial (IEDI) confirmou em boletim recente que a produção industrial caiu 2,4% no segundo trimestre de 2025, e alertou que o uso da capacidade instalada está no menor nível desde 2017.
Empresas que já cortaram milhares de postos em 2025
Diversos casos recentes confirmam essa tendência:
- ADM (Três Corações – MG): fechou sua fábrica de ração animal, afetando mais de 900 funcionários. A empresa justificou a decisão como parte de uma reestruturação global.
- General Motors (SP): anunciou cortes em pelo menos três unidades produtivas, gerando greves. Os sindicatos acusam a empresa de usar o cenário econômico como pretexto para reduzir custos trabalhistas.
- Ford (Camaçari – BA): embora seu fechamento tenha ocorrido em 2021, em agosto de 2025 a Justiça do Trabalho condenou a montadora a pagar R$ 30 milhões por danos morais coletivos. A decisão destacou a falta de negociação com os trabalhadores e o impacto social massivo da saída abrupta, que afetou mais de 60 mil pessoas de forma direta e indireta.
- Indústria madeireira no Paraná: uma das maiores do interior brasileiro decretou férias coletivas para mais de 1.500 trabalhadores, sem previsão de retorno.
- Setor calçadista (RS): com a entrada em vigor das tarifas dos EUA, o setor estima perda de até 8 mil empregos diretos, em um momento de queda nas exportações e aumento no custo dos insumos.
Um país que reduz pessoal, mas não reduz a incerteza
A combinação de fatores internos — como políticas fiscais restritivas, insegurança tributária e ausência de uma política industrial clara — com pressões externas e uma economia global desacelerada, criou um clima de incerteza estrutural no Brasil. As empresas demitem para se proteger, enquanto o governo insiste numa narrativa de responsabilidade fiscal, mas sem oferecer respostas concretas para evitar a perda de empregos qualificados.
Enquanto isso, sindicatos pressionam por mais diálogo e medidas de transição. E a força de trabalho, especialmente em polos industriais como São Paulo, Minas Gerais e Rio Grande do Sul, vê o mercado de trabalho se deteriorar sem perspectivas claras de recuperação no curto prazo.