O yuan ganha espaço no comércio internacional e desafia a hegemonia do dólar, criando influência inédita no FMI desde a 2ª Guerra.
A ascensão da moeda chinesa no comércio internacional está se tornando um dos movimentos econômicos mais significativos desde o fim da Segunda Guerra Mundial. De uma participação quase irrelevante há duas décadas para uma presença cada vez mais sólida nas transações bilaterais e nas reservas de diversos países, o yuan — ou renminbi — está se consolidando como uma alternativa estratégica ao dólar. E esse avanço não é apenas econômico: ele carrega implicações geopolíticas profundas, colocando o Fundo Monetário Internacional (FMI) e os Estados Unidos diante de um cenário inédito em mais de 70 anos.
Do plano doméstico à ofensiva global: como a China construiu a força do yuan
A estratégia de internacionalização do yuan começou timidamente nos anos 2000, quando a China iniciou reformas cambiais para permitir que sua moeda fosse usada em transações comerciais externas.
O verdadeiro impulso veio após a crise financeira de 2008, que expôs a vulnerabilidade de países excessivamente dependentes do dólar.
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Pequim aproveitou o momento para fechar acordos bilaterais de swap cambial com dezenas de países, permitindo que empresas e governos pudessem negociar diretamente em yuan. Hoje, mais de 60 países têm linhas de liquidez com a China, abrangendo regiões estratégicas como América Latina, África, Ásia Central e Oriente Médio.
O avanço no comércio internacional e a diversificação das reservas globais
Segundo dados da Society for Worldwide Interbank Financial Telecommunication (SWIFT), a participação do yuan nos pagamentos internacionais superou 5% em 2024 — um salto expressivo em relação aos 2% registrados apenas quatro anos antes. Embora ainda distante do domínio do dólar (cerca de 46% das transações), o crescimento é acelerado e constante.
No campo das reservas internacionais, o Fundo Monetário Internacional estima que aproximadamente 3% dos ativos mantidos por bancos centrais já estão denominados em yuan.
Pode parecer pouco, mas esse número é estratégico: até 2016, o yuan nem sequer fazia parte da cesta de moedas que compõem os Direitos Especiais de Saque (DES) do FMI. Sua inclusão foi um marco que reconheceu oficialmente a moeda chinesa como parte do núcleo financeiro global.
A dívida dos países com a China e o peso da Iniciativa do Cinturão e Rota
Outro vetor fundamental da expansão do yuan é o financiamento de infraestrutura global pela China por meio da Belt and Road Initiative (BRI), ou Iniciativa do Cinturão e Rota.
Estima-se que mais de US$ 1 trilhão já tenham sido emprestados a países participantes, grande parte em condições que incentivam o uso do yuan como moeda de pagamento e quitação da dívida.
Essa prática cria uma teia de dependência financeira: ao deverem em yuan, países se veem compelidos a usar a moeda em suas operações comerciais, fortalecendo seu papel nas economias locais e reduzindo a influência direta do dólar.
Setores estratégicos onde o yuan ganha terreno
O avanço da moeda chinesa não acontece de forma homogênea, mas é particularmente visível em setores estratégicos:
- Energia: contratos de petróleo e gás liquefeito com países como Rússia, Irã e Arábia Saudita já são liquidados parcialmente em yuan.
- Minérios e metais raros: acordos com países africanos e latino-americanos têm usado o yuan como moeda preferencial, especialmente no fornecimento de lítio, cobre e cobalto.
- Tecnologia: pagamentos e investimentos em telecomunicações, incluindo parcerias com empresas como a Huawei, frequentemente incluem cláusulas de liquidação em moeda chinesa.
O desafio ao FMI e ao sistema liderado pelo dólar
Desde o fim da Segunda Guerra Mundial, o FMI e o Banco Mundial têm funcionado como pilares do sistema financeiro global, com o dólar como base das reservas internacionais e das operações de crédito.
A crescente relevância do yuan desafia essa estrutura, não apenas pela participação no comércio, mas pelo fato de criar redes de liquidez e financiamento paralelas às tradicionais.
Isso significa que, pela primeira vez em décadas, países endividados têm a opção de buscar recursos fora da órbita do FMI — e sem necessariamente aderir às condicionalidades impostas pelo fundo, que incluem reformas econômicas e políticas.
O papel do BRICS e o alinhamento com parceiros estratégicos
O fortalecimento do yuan está intimamente ligado ao bloco BRICS, onde a China atua como principal força econômica. A ampliação do grupo, com a entrada de países como Arábia Saudita, Egito e Emirados Árabes Unidos, cria novas oportunidades para acordos de comércio em moedas locais, reduzindo a conversão em dólar.
A integração do yuan com iniciativas como o BRICS Pay e sistemas de moeda digital emitida por bancos centrais pode acelerar ainda mais a tendência de desdolarização parcial.
Limites e obstáculos ao “novo dólar” chinês
Apesar do avanço, o yuan ainda enfrenta obstáculos significativos para substituir ou rivalizar o dólar. A moeda chinesa não é totalmente conversível, o que limita seu uso livre nos mercados internacionais.
Além disso, o controle rígido do governo sobre fluxos de capital pode gerar desconfiança entre investidores que valorizam a transparência e a estabilidade institucional do sistema americano.
Outro ponto é que, mesmo com o aumento do comércio em yuan, a liquidez global ainda está amplamente concentrada no dólar, que possui décadas de confiança construída e um mercado de capitais profundo e aberto.
O que esperar para os próximos anos
Analistas divergem sobre o potencial do yuan se tornar um verdadeiro “novo dólar”. Alguns acreditam que a moeda chinesa pode atingir participação de 10% a 15% no comércio global até 2035, especialmente se combinada a moedas digitais de bancos centrais e sistemas alternativos de liquidação. Outros, porém, argumentam que a falta de liberalização total do câmbio e a centralização política da China limitarão essa ascensão.
De todo modo, a expansão do yuan já é suficiente para alterar estratégias comerciais e diplomáticas, forçando governos e empresas a repensar sua exposição ao dólar e suas alternativas de financiamento.
O avanço do yuan não significa a morte do dólar — pelo menos não a curto prazo. Mas, pela primeira vez desde 1945, a arquitetura financeira global está diante de um competidor com peso econômico real, suporte político e ambição de remodelar o comércio mundial. O “novo dólar” chinês pode não substituir o original, mas já está escrevendo seu capítulo na disputa pelo poder econômico planetário.