Governo brasileiro adia decisão sobre retaliação a tarifas dos EUA enquanto Lula e Trump sinalizam aproximação diplomática na ONU. O futuro das medidas de reciprocidade depende do resultado das conversas entre os dois presidentes.
O governo brasileiro interrompeu o avanço do processo para aplicar a Lei da Reciprocidade contra os Estados Unidos no mesmo dia em que Donald Trump acenou a Luiz Inácio Lula da Silva na Assembleia-Geral da ONU e sinalizou uma conversa com o presidente brasileiro para a semana seguinte.
A decisão suspendeu a deliberação que poderia admitir oficialmente o uso do instrumento jurídico e abrir caminho para medidas como restrições a patentes, investimentos e concessões.
Deliberação adiada no Gecex
A votação sobre a admissibilidade da lei estava prevista para a 229ª reunião do Gecex, órgão da Camex responsável por avaliar o enquadramento do caso. A sessão começou por volta das 10h30 de terça-feira, 23 de setembro, mas o item não foi apreciado.
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Segundo reportagem publicada pela Folha de S.Paulo, o adiamento havia sido solicitado antes da abertura da reunião, e a análise foi postergada por pelo menos uma semana.
Enquanto o colegiado se reunia em Brasília, Trump discursava em Nova York, na ONU, e mencionava Lula de forma positiva.
A coincidência de agenda reforçou, dentro do governo, a leitura de que uma conversa direta entre os dois líderes poderia afetar o ritmo da resposta brasileira às tarifas impostas por Washington.
Sinal político após discurso de Trump
No plenário da Assembleia-Geral, Trump afirmou ter tido “uma excelente química” com Lula em um breve encontro antes do discurso.
Ele acrescentou: “Eu só faço negócios com pessoas de quem eu gosto”.
E, em tom bem-humorado, disse que por “pelo menos 39 segundos” a química entre os dois foi positiva.
O gesto foi interpretado por alas do governo como um convite à reabertura de canais de diálogo sobre comércio.
Lula, em entrevista coletiva antes de retornar ao Brasil, não descartou um encontro presencial com o republicano.
Já o chanceler Mauro Vieira declarou à jornalista Christiane Amanpour que a conversa deve ocorrer por telefone ou videoconferência.
Para assessores do Palácio do Planalto e do Itamaraty, é crucial que essa interação ocorra dentro do esperado, sem ruídos que comprometam a negociação.
Divergência interna e cálculo de risco
Antes da reunião do Gecex, havia divergência entre membros do governo sobre a melhor estratégia.
Uma corrente defendia dar andamento ao processo de retaliação, diante da dificuldade de avanço nas tratativas com os americanos.
Outra ala temia a escalada de tensões e a possibilidade de o Brasil se tornar alvo de novas sanções, razão pela qual recomendava aguardar a conversa entre os presidentes.
De acordo com apuração do jornal Folha de S.Paulo, técnicos envolvidos no tema avaliam que, em cenários de guerra comercial, medidas de reciprocidade tendem a ganhar ou perder tração conforme os sinais vindos da parte adversária.
Por esse raciocínio, a disposição declarada por Trump em abrir negociação real esvazia, por ora, a urgência de acionar o arcabouço jurídico brasileiro.
Caso os canais de diálogo não prosperem, a expectativa é que o debate sobre retaliações volte à mesa.
O que prevê a Lei da Reciprocidade
A Lei da Reciprocidade prevê a possibilidade de o Brasil adotar, em resposta a medidas unilaterais de outro país, ações como restrições a patentes, investimentos e concessões, entre outras hipóteses previstas no marco jurídico do comércio exterior.
O objetivo é reequilibrar condições de concorrência quando parceiros aplicam tarifas ou barreiras sem amparo em compromissos internacionais.
No final de agosto, a secretaria-executiva da Camex informou ter recebido do Itamaraty o pedido para iniciar o processo de aplicação dessas medidas contra os Estados Unidos, devido às tarifas anunciadas por Washington sobre exportações brasileiras.
Com a admissibilidade, o Gecex poderia instituir um grupo de trabalho para elaborar propostas, submetê-las a consulta pública e, na sequência, encaminhá-las ao Conselho Estratégico da Camex para decisão final.
Relatório técnico em elaboração
Para a reunião desta semana, o plano inicial era apresentar um relatório com a análise do impacto econômico e setorial das tarifas norte-americanas, a partir de subsídios técnicos de diferentes ministérios.
Esse documento também avaliaria se as medidas de Washington configuram violação das regras internacionais de comércio, o que reforçaria a base legal para o acionamento da reciprocidade.
O item não foi excluído da pauta, mas não houve decisão sobre próximos passos.
Em resumo, o Gecex tomou conhecimento do andamento do relatório e dos prazos aplicáveis às etapas seguintes.
Segundo o Ministério do Desenvolvimento, Indústria, Comércio e Serviços (MDIC), não houve mudança nesses prazos: a secretaria-executiva da Camex tem 30 dias, prorrogáveis por mais 30, para concluir o relatório e entregá-lo ao colegiado.
O jornal Folha de S.Paulo também apontou que esse cronograma segue em vigor, apesar da suspensão da deliberação.
Mediação empresarial e aproximação comercial
A aproximação entre Brasília e Washington tem contado com a atuação de grandes grupos empresariais.
Embraer e JBS participaram de conversas que favoreceram a linha pró-negociação.
Há cerca de três semanas, Joesley Batista esteve na Casa Branca para tratar da sobretaxa de 50% aplicada a produtos brasileiros e defendeu que as diferenças comerciais podem ser resolvidas por meio do diálogo.
Segundo a Folha de S.Paulo, esse tipo de iniciativa do setor privado tem ajudado a pavimentar canais entre os governos e a reforçar a ala que defende a negociação como alternativa à escalada de sanções.
Próximas etapas sob observação
Com a deliberação adiada, o governo monitora a agenda da conversa entre Lula e Trump e seus desdobramentos.
O relatório da Camex segue em elaboração dentro dos prazos legais.
Se houver sinal verde para negociações com cronograma e escopo definidos, a tendência é desacelerar a tramitação da reciprocidade.
Se os canais se mostrarem insuficientes, a estratégia de retaliação volta a ganhar força.
Nesse contexto, interlocutores consideram essencial calibrar o timing: avançar com o instrumento jurídico sem consolidar pontes pode endurecer o ambiente, enquanto esperar por conversas indefinidas pode prolongar a incerteza para exportadores brasileiros.
A prioridade, por ora, é manter margem de manobra, com os trabalhos técnicos em curso e a frente diplomática aberta.
Qual deve ser o equilíbrio entre pressão regulatória e diálogo com Washington para proteger a indústria brasileira sem acirrar a disputa tarifária?