A rotina dos garimpeiros em Chinguetti e Chami expõe uma cidade subterrânea de ouro, com túneis que chegam a 48 metros, turnos que atravessam a madrugada, oração na tenda, refino com mercúrio e a economia paralela que liga o deserto ao porto de Nouadhibou
No coração do Saara, os garimpeiros da Mauritânia transformaram áreas próximas a Chinguetti e Chami em um labirinto de túneis, polias, cordas e ventilações improvisadas. A cena mistura poeira fina, rocha dura e uma coreografia aprendida em parte com mineradores vindos do Sudão, num esforço que começa na compra do equipamento, atravessa descidas de até 48 metros e termina na corrida pelo refino do minério nas oficinas de Alchami.
Durante quatro dias, a reportagem acompanhou a descida, a espera e o retorno à superfície. Entre uma carga e outra, os garimpeiros pausam para o chá, rezam na tenda da pequena mesquita, verificam o oxigênio que chega por tubos e voltam ao fundo. Alguns dormem no interior dos túneis por até duas noites, mantendo uma rotina que sustenta uma cadeia de renda oficialmente regulada pelo Estado, mas disputada por atravessadores no entorno das áreas de refino.
Quem desce e por que desce

O rosto mais conhecido desse front é Moulay, minerador que relata ter descido centenas de vezes e atingido 48 metros de profundidade.
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O relato padrão repete-se em muitos poços: corda, polia, rocha com veio aurífero, silêncio e um relógio que não apita lá embaixo.
A habilidade, segundo os veteranos, foi em parte lapidada por técnicas que circularam pelo Sudão, onde os garimpeiros ganharam experiência antes de consolidar o método mauritano.
A motivação é direta. O ouro, descoberto por acaso em 2016, virou válvula de emprego e renda e recebeu moldura regulatória.
Garimpeiros descem em equipes, se revezam no estreito, carregam mantimentos e, quando necessário, dormem no subsolo por 24 a 48 horas, para aproveitar a abertura do veio e reduzir o tempo de deslocamento entre superfície e fundo.
Como se cava um deserto
A preparação começa em Chami, onde a cidade vende do básico ao especializado: polias, cabos, ferramentas de corte.
No campo, os garimpeiros marcam o terreno, abrem o primeiro eixo e seguem por “ruas” subterrâneas que conectam poços vizinhos.
O sistema de ventilação é simples e decisivo: tubos levam ar para dentro, enquanto o calor do deserto exige cadência e pausas.
A cidade subterrânea existe e tem lógica própria. Há túneis ativos, túneis condenados e pontos onde o risco de colapso é alto.
Supervisores como Mamoto, chamado de Muhammad pelos companheiros, controlam a segurança e o fluxo.
A oração em tenda organiza o tempo na superfície; lá embaixo, organizam o tempo as lanternas, o barulho do metal contra a rocha e as mochilas com água e chá.
Viver 48 metros abaixo da areia
A descida é vertical e o retorno, incerto. Garimpeiros relatam permanências de 10 horas seguidas no veio, às vezes em grupos de cinco dentro do mesmo poço estreito.
A rotina inclui refeições simples, hidratação constante e cochilos rápidos.
O oxigênio administrado por tubulações improvisadas é monitorado como prioridade absoluta.
Do lado de fora, o deserto impõe logística rigorosa.
O calor acelera a fadiga e obriga a rodízios frequentes.
A cada turno, sacos de minério sobem, os garimpeiros emergem cobertos de pó e alguém checa se o poço continua estável.
“Anjo da Morte” é o apelido de uma das áreas mais perigosas, lembrando que nem todo retorno é garantido.
Do veio ao cadinho: a economia do refino

O trajeto do minério segue para Alchami, onde uma cidade de refino opera como fábrica a céu aberto.
Moinhos trituram rochas até virar polpa; nas lagoas, o mercúrio captura o ouro pela amalgamação.
O processo, repetido casa a casa, concentra o metal e produz pequenas pepitas negociadas na hora.
A regulamentação oficial determina a venda à autoridade competente, mas o mercado paralelo atrai parte da produção.
Entre a norma pública e a conveniência privada, os garimpeiros recebem à vista, barganham peso por grama e correm para o próximo lote.
O ciclo recomeça ao amanhecer, quando os caminhões de minério retomam o vai e vem entre as frentes de cava e as oficinas.
Um deserto que exporta muito além do ouro
A economia mauritana não roda apenas no ouro.
O porto de Nouadhibou escoa minério de ferro trazido por um trem que cruza o Saara, além de pescados de alto valor que partem para vários destinos.
De Nouakchott a Chami, a infraestrutura de comércio alimenta a circulação de mercadorias, pessoas e dinheiro, sustentando o vaivém que mantém os garimpeiros equipados e as oficinas cheias.
Esse ecossistema do deserto é interdependente: o ouro financia a permanência no campo, o porto dá vazão à riqueza mineral e a rede de serviços, do chá à peça de reposição, segura as pontas quando um poço fecha ou um veio esfria.
A cada nova frente, a cidade subterrânea se recompõe e os garimpeiros voltam a descer.
Risco, fé e método
A segurança é uma negociação diária com a rocha.
O conjunto de boas práticas inclui evitar túneis instáveis, reforçar paredes com madeira, manter a ventilação ativa e respeitar sinais de saturação.
No subsolo, o método é tudo: dividir tarefas, controlar peso por viagem e não forçar quando o eixo está úmido ou escorregadio.
Na superfície, a fé costura o cotidiano. A mesquita improvisada marca as horas, os garimpeiros alinham a reza com o revezamento e as tendas servem de abrigo do sol.
Entre a mística da “terra de milhões de poetas” e a matemática do grama, o deserto cobra disciplina de quem decide ficar.
A vida de garimpeiros no Saara mauritano combina técnica, risco e uma cadeia econômica que nasce no túnel e termina no cadinho.
Na sua avaliação, qual é o ponto mais crítico desse circuito para garantir trabalho seguro e renda justa: ventilação e estabilidade dos poços, regulação do refino com menos mercúrio ou compra oficial com preços mais transparentes?



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