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Esta invenção brasileira surge como grande esperança para salvar os jumentos da extinção, causada pela demanda chinesa por suas peles

Publicado em 17/10/2025 às 17:38
Jumentos, Extinção, Pele, Ejião
Imagem: Ilustração artística feita por IA
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Pesquisadores de universidades federais brasileiras unem esforços para salvar os jumentos nordestinos, ameaçados pela indústria chinesa do ejiao, desenvolvendo colágeno sintético por fermentação de precisão como alternativa ética e sustentável

Os pesquisadores mais conceituados de equinos de universidades federais brasileiras têm se unido para enfrentar o risco real de extinção dos jumentos na região Nordeste. A crise é resultado de uma demanda bilionária chinesa, que compra as peles dos animais para produzir ejiao, um elixir usado na Medicina Tradicional Chinesa (MTC) e que promete vitalidade e benefícios à saúde.

Entre os estudos mais promissores está uma pesquisa da Universidade Federal do Paraná (UFPR) que pretende gerar, até o final de 2026, os primeiros resultados para a produção de colágeno de jumento feito em laboratório, usando fermentação de precisão.

A técnica, também chamada de agricultura celular, consiste no cultivo de células e tecidos em ambiente controlado e pode se tornar uma alternativa ao abate desses animais no mundo.

Os avanços do projeto foram apresentados no 13º Congresso Mundial de Alternativas e Uso de Animais nas Ciências da Vida (WC13), realizado no Rio de Janeiro, em setembro.

A inovação chamou atenção porque oferece uma possível solução para reduzir a matança global de jumentos causada pela indústria do ejiao.

A demanda por colágeno extraído da pele desses animais já provocou o desaparecimento quase total da espécie em várias regiões da África.

No Brasil, cientistas alertam que houve uma redução de 94% da população de jumentos nas últimas décadas, colocando o Equus asinus em risco real de extinção.

Uma espécie que moldou a história do Nordeste

Os jumentos chegaram ao Brasil em 1534, trazidos por Martim Afonso de Souza para a Capitania de São Vicente.

Desde então, espalharam-se principalmente pelo Nordeste, onde chegaram a representar 90% da população total do país, tornando-se parte essencial da cultura e da sobrevivência no semiárido.

Durante séculos, eles foram usados para o transporte de água, lenha, pessoas e alimentos. No entanto, a partir dos anos 1990, começaram a ser substituídos por motocicletas, iniciando um processo de abandono e desaparecimento que se agravou na última década com o comércio de ejiao.

Segundo a ONG britânica The Donkey Sanctuary, de 2018 a 2024 pelo menos 248 mil jumentos foram abatidos na Bahia, único estado com três frigoríficos autorizados pelo Serviço de Inspeção Federal (SIF) para esse tipo de atividade. O número impressiona e acendeu o alerta entre os pesquisadores.

Estamos prestes a ficar sem jumentos no Brasil, e não é um comércio que se defenda, nem do ponto de vista puramente pragmático do comércio”, alerta Carla Molento, doutora em zootecnia e coordenadora dos laboratórios de Bem-Estar Animal (Labea) e Zootecnia Celular da UFPR.

É um beco sem saída. Seria importante que isso fosse parado antes que acabemos com os jumentos, porque só vai parar na hora que acabarmos com eles”, afirma.

Ameaça global e decisão africana

Celebrado há milênios na China como um símbolo de vitalidade, o ejiao tornou-se um produto de luxo.

No entanto, seu sucesso criou um impacto devastador sobre as populações de jumentos na África, Ásia e América do Sul.

Em 2024, a União Africana tomou uma decisão inédita: proibiu por 15 anos o abate de jumentos em todo o continente, em um acordo aprovado por unanimidade por 55 chefes de Estado.

A medida contrariou interesses econômicos chineses, mas priorizou a preservação de uma espécie domesticada há cerca de 7 mil anos na África e fundamental para as comunidades rurais.

O gesto africano inspirou cientistas brasileiros, que veem no jumento não apenas um símbolo nordestino — imortalizado em canções de Luiz Gonzaga e na literatura de cordel —, mas também um patrimônio histórico e cultural do país.

Uma alternativa científica e ética

A pesquisadora Carla Molento lidera o grupo que desenvolve a produção de colágeno sintético do jumento.

O trabalho recebe apoio do Ministério do Meio Ambiente e Mudança do Clima (MMA), da Fundação Araucária do Paraná e da Universidade de Wageningen, na Holanda.

O objetivo é criar uma alternativa rastreável, ética e sustentável para o mercado chinês — e, ao mesmo tempo, eliminar a necessidade de abate dos animais.

A grande inovação está na forma de produzir o colágeno idêntico ao do jumento, codificado pelo DNA do animal, mas desacoplado da matança”, explica Molento.

O processo insere o DNA do jumento em micro-organismos geneticamente modificados. Ao se multiplicarem, esses micro-organismos produzem o mesmo colágeno.

Depois, o material é purificado dentro de um biorreator, sem qualquer envolvimento de animais.

Na prática, enquanto hoje é preciso usar a pele inteira para extrair o colágeno, a fermentação de precisão usa apenas a biomassa gerada no reator.

O resultado é o mesmo produto, porém sem sofrimento animal e com uma pegada ambiental muito menor.

Continuaremos tendo um produto para exportação, mas sem dizimar nossos animais”, afirma a pesquisadora.

Caminho longo até a industrialização

Apesar da urgência da situação, a cientista reconhece que o processo levará tempo. O projeto está em fase de escalonamento e otimização de custos, além de depender de aprovação de agências regulatórias nacionais e internacionais, especialmente chinesas, para viabilizar a exportação.

Precisamos de duas coisas: mais investimento e uma moratória na venda de colágeno. Só assim poderemos tomar decisões inteligentes”, diz Molento.

Hoje, o MMA e a Fundação Araucária disponibilizam R$ 500 mil para o projeto, valor importante, mas insuficiente para acelerar o desenvolvimento.

Mesmo assim, os cientistas acreditam que o Brasil pode ter um papel de liderança global nesse tipo de biotecnologia.

Molento não descarta a criação de uma startup incubada na universidade para viabilizar a produção comercial em escala.

Um relatório da The Donkey Sanctuary, publicado em 2021, aponta que 58% dos consumidores chineses de ejiao aceitariam comprar produtos feitos com agricultura celular se o preço fosse acessível.

A pesquisa, realizada pela empresa britânica YouGov, reforça a viabilidade do plano brasileiro.

Segundo a consultoria Newsijie, com sede em Pequim, o mercado de ejiao movimenta mais de 58 bilhões de yuans por ano — cerca de R$ 42 bilhões — e consome 5,9 milhões de peles de jumentos anualmente.

Para os pesquisadores, substituir parte dessa demanda com colágeno sintético seria um avanço histórico.

Tragédia em Canudos e mobilização nacional

A união entre universidades federais começou após uma tragédia. Em fevereiro de 2019, uma denúncia levou à descoberta de 200 jumentos mortos de fome em uma fazenda em Canudos, a 372 km de Salvador. Outros 800 animais estavam morrendo lentamente à espera do abate.

O caso chocou o país e levou à formação de uma rede nacional de pesquisadores. “Foi esse episódio que realmente uniu as universidades federais do Brasil”, relembra Pierre Barnabé Escodro, professor da Universidade Federal de Alagoas (Ufal).

Segundo ele, a salvação dos jumentos exige um conjunto de medidas — tecnológicas, sociais e políticas. “Buscamos soluções de curto, médio e longo prazo com impacto socioeconômico, ecológico e de bem-estar animal”, explica.

Escodro coordena o Grupo de Pesquisa em Equídeos e Saúde Integrativa (Grupequi), que reúne especialistas de diversas áreas: agronomia, biologia, ciências sociais, economia, medicina veterinária e zootecnia.

Quatro frentes de pesquisa para salvar os jumentos da extinção

Os cientistas trabalham em quatro grandes frentes de pesquisa.

A primeira é o projeto da UFPR, voltado à produção de colágeno sintético.

A segunda busca reinserir os jumentos na agricultura familiar do Nordeste, valorizando-os como patrimônio cultural e genético.

A terceira estuda o uso dos animais em terapias assistidas com crianças, como já acontece com cavalos.

A quarta foca em bioprodutos derivados, como o leite de jumenta, pesquisado na Faculdade de Medicina Veterinária e Zootecnia da USP, e no desenvolvimento de vacinas.

Escodro reconhece que algumas ideias enfrentam resistência de organizações de proteção animal, mas defende um uso ético e produtivo.

Se a cadeia da carne não é viável, precisamos encontrar novas aptidões para o jumento — reintroduzi-lo de forma ética e útil, como sempre foi”, diz.

Obstáculos reprodutivos e justiça social

Um dos fatores que limitam a exploração intensiva da espécie é o longo período de gestação, que dura de 11 a 12 meses.

Além disso, o jumento só atinge a idade de abate depois de três anos, o que inviabiliza qualquer produção em larga escala.

Para Patrícia Tatemoto, doutora em medicina veterinária e porta-voz da The Donkey Sanctuary no Brasil, o tema vai além da biotecnologia: “A preservação dos jumentos é uma questão de justiça social. O Brasil precisa ser solidário à União Africana e proteger as comunidades invisíveis que ainda dependem desses animais”, afirma.

O falso milagre econômico da pele de jumento

Outro ponto destacado pelos cientistas é o baixo retorno econômico da indústria de ejiao para o Brasil.

“Não é um bom negócio. Gera pouco emprego e não muda a realidade econômica das cidades”, avalia Roberto Arruda Souza Lima, professor da Esalq/USP e especialista em economia do agronegócio.

Ele explica que a arrecadação de impostos é pequena e que a maior parte do lucro fica na indústria chinesa, não nos frigoríficos brasileiros.

É como se estivéssemos transferindo recursos brasileiros para a China”, resume.

Escodro concorda: “Não temos uma cadeia produtiva. O que existe é um extrativismo internacional em torno da pele do jumento.”

O início da demanda chinesa por pele de jumentos

A demanda por jumentos chegou ao Brasil em 2015, quando a então ministra da Agricultura, Kátia Abreu, comentou no Twitter que a China havia solicitado 1 milhão de jumentos por ano para atender sua indústria de ejiao.

O comentário, feito em tom de brincadeira, acabou abrindo as portas para negociações posteriores.

Desde então, políticos e empresários do interior da Bahia começaram a celebrar acordos com companhias chinesas.

A prefeitura de Amargosa, por exemplo, firmou um protocolo de intenções com a Deej World, braço da gigante Dong’e Ejiao Corporation (DEEJ), maior produtora mundial de ejiao e controlada pela estatal China Resources Pharmaceutical.

De acordo com comunicados da prefeitura, o acordo previa transferência de tecnologia e apoio técnico ao agronegócio local. Nenhum documento, no entanto, mencionava os jumentos.

Mesmo assim, a DEEJ, que dedica 93,64% de sua produção ao ejiao, pretendia instalar um complexo de “melhoramento genético de jumentos” em Amargosa.

Intervenção do Ministério Público da Bahia

Em setembro de 2024, o Ministério Público da Bahia (MP-BA) considerou o acordo inconstitucional e suspendeu os planos da empresa chinesa, alegando que o projeto configurava exploração em massa de jumentos para exportação de pele.

O abatedouro Frinordeste, sediado no município, é atualmente o maior fornecedor de peles de jumento do país e o principal exportador habilitado pelo SIF.

O MP apontou ainda riscos ambientais e ausência de licenciamento adequado, além da falta de avaliação da Comissão Técnica Nacional de Biossegurança (CTNBio), que deveria analisar o uso de tecnologias genéticas.

Segundo parecer técnico, “o protocolo omite informações e não cumpre as normas da Resolução 16/2018, que exige submissão prévia à CTNBio”.

A prefeitura de Amargosa não respondeu ao pedido de entrevista. Em 2021, o então prefeito Júlio Pinheiro afirmou que o setor era o terceiro maior empregador da cidade, atrás apenas da prefeitura e de uma fábrica de sapatos.

Riscos sanitários e denúncias trabalhistas

A perseguição aos jumentos tem gerado problemas sanitários graves, segundo pesquisadores e órgãos públicos.

A Agência de Defesa Agropecuária da Bahia registrou casos de mormo em humanos — uma infecção transmitida por equídeos que causa pneumonia e pode ser fatal. O risco surgiu em meio às operações de transporte e abate dos animais.

Além disso, inspeções identificaram trabalho infantil e condições análogas à escravidão em fazendas e rotas de transporte associadas ao comércio de peles.

Para Barnabé Escodro, é preciso enfrentar não apenas a extinção da espécie, mas também os impactos sociais desse modelo. “Temos de entender o jumento dentro do ecossistema nordestino e garantir que ele volte a ter um papel digno”, afirma.

O futuro dos jumentos brasileiros

O conjunto de iniciativas espalhadas por universidades brasileiras marca um momento histórico na defesa da espécie.

O grupo de cientistas aposta na biotecnologia como ferramenta principal, mas também trabalha em projetos culturais e educacionais para recuperar o valor simbólico do jumento no Nordeste.

A gente precisa olhar para esses animais com o mesmo respeito que dedicamos à nossa história. Eles foram essenciais para a sobrevivência de milhões de pessoas”, resume Escodro.

A esperança está em unir ciência e tradição. Se o colágeno de laboratório chegar ao mercado e as políticas públicas avançarem, o Brasil poderá se tornar referência mundial em bem-estar animal e inovação sustentável, revertendo um ciclo cruel que ameaça uma das espécies mais emblemáticas da região.

Enquanto isso, os cientistas seguem firmes no propósito de provar que há futuro para o jumento — sem abate, sem sofrimento e com tecnologia brasileira.

Com informações de BBC.

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Romário Pereira de Carvalho

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