Economista aponta que o varejo perdeu fôlego mesmo em data sazonal forte, sinalizando consumidor endividado, crédito caro e confiança em queda, com risco de contágio para emprego, indústria e arrecadação.
O varejo entrou no último trimestre pressionado por sinais de fraqueza que se repetem há meses. Indicadores setoriais mostram que as vendas recuaram no terceiro trimestre em relação ao mesmo período de 2024, apesar de uma alta pontual em setembro frente a agosto. Quando a melhora mensal não compensa a queda trimestral, o recado é claro: a recuperação não se sustenta.
O Dia das Crianças, tradicional termômetro do varejo, reforçou o diagnóstico. Conforme o economista e jornalista Josué Aragão, levantamentos recentes indicam gasto médio menor com presentes, maior intenção de reduzir despesas e fluxo abaixo do esperado. Se nem uma data emocional destrava o consumo, a confiança do brasileiro está no chão, e o segundo semestre perde o papel de “respiro” do comércio.
O que explica o freio no varejo
O primeiro vetor é a renda comprometida. Dados monitorados ao longo do ano mostram famílias destinando perto de um terço do orçamento ao serviço da dívida.
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Com mais dinheiro voltado para pagar o passado, sobra menos para o presente, o que atinge de imediato o varejo de bens não essenciais.
O segundo vetor é o crédito. Mesmo com alguma desaceleração de preços, o custo financeiro segue alto para cartões e parcelados, limitando tíquete e recorrência.
Na prática, o consumidor testa limites menores de compra e alonga decisões, enquanto lojistas veem conversão e mix migrarem para itens mais baratos.
Dia das Crianças acendeu o alerta vermelho
Os sinais qualitativos das lojas convergem: menor tráfego, tíquete encolhendo e estoque girando devagar.
Pesquisas de intenção mostraram 37% dos entrevistados dispostos a gastar menos e pouco mais da metade repetindo o gasto do ano anterior.
O valor médio dos presentes ficou na casa de R$ 63,93, abaixo de 2024, indicando troca para faixas de preço inferiores.
Também houve mudança no carrinho. Projeções para a data apontaram vestuário e calçados como maior fatia do faturamento, seguidos por eletrônicos e brinquedos.
Quando o consumidor prioriza reposição de guarda-roupa e corta supérfluos, o varejo sente no caixa e posterga campanhas mais agressivas até a Black Friday.
Crédito caro e endividamento comprimem a demanda
A rigidez do custo do dinheiro nos meios de pagamento, somada à inadimplência ainda elevada, mantém a curva de risco alta.
Com isso, limites encolhem, aprovações demoram e parcelas encarecem, estrangulando o impulso de compra no varejo físico e digital.
Há ainda o efeito renda real. Mesmo com inflação moderada em média, itens caros para a família subiram acima do índice, como alimentação fora de casa e lazer infantil.
O consumidor percebe a perda no supermercado e no passeio, reorça o freio emocional e empurra compras para frente.
Efeitos em cadeia sobre emprego, indústria e preços
Quando o varejo desacelera, o impacto ricocheteia na indústria e nos serviços.
Lojas adiam reposição, cortam pedidos e reduzem vagas temporárias, justamente no período em que tradicionalmente abrem posições.
A fábrica desacelera turnos, e o transporte sente menos fretes.
O quadro também pressiona margens. Com demanda fraca, o lojista evita repasse de custos, aceitando promoções mais longas e descontos maiores para girar estoque.
Isso ajuda a segurar preços no curto prazo, mas dilui rentabilidade e desestimula investimento.
O que o varejo pode fazer agora
A resposta tática começa no caixa. Proteja a liquidez e ajuste metas ao cenário de demanda real, não ao orçamento ideal.
Recalibre compra e sortimento para curvas A e B, reduza profundidade de coleção e encurte ciclos de recebimento para liberar capital de giro.
Na ponta de venda, favoreça tíquetes menores com combos inteligentes e planos de parcelamento sustentáveis, sem transferir risco excessivo.
Fortaleça CRM e comunicação de recorrência com ofertas personalizadas, priorizando categorias de alta saída e estoque com risco de obsolescência.
Como o consumidor está decidindo
As evidências do Dia das Crianças mostram um comprador hiper seletivo. Ele compara, espera promoção e prefere soluções úteis.
Itens de refeição fora, lazer e mimos ficaram mais caros, então ganha quem entrega valor percebido claro, garantia simples e pós-venda sem atrito. No digital, frete e prazo seguem decisivos.
Para marcas e lojistas, a lição é manter propostas enxutas, preços transparentes e jornada descomplicada.
Prometer menos e cumprir mais vale mais no ciclo atual do que campanhas ruidosas. Confiança se reconstrói na experiência, compra a compra.
O que observar até a Black Friday e o Natal
Três métricas contam a história.
Primeiro, tráfego e conversão, especialmente no mobile.
Segundo, tíquete médio por categoria, para entender a troca de mix.
Terceiro, estoque parado e cobertura de dias, que sinalizam risco de liquidações forçadas. Se a Black Friday vier com demanda fraca, o Natal corre risco de tornar-se apenas reposição básica, e não expansão.
Para o varejo, o cenário exige foco operacional, inteligência promocional e disciplina de capital de giro. Para a economia, o recado é que confiança, renda e crédito precisam andar juntos para reativar o consumo de forma saudável.