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De modelo europeu a crise habitacional: como a Alemanha destruiu seu próprio sistema de moradia e criou uma geração sem casa própria

Publicado em 24/10/2025 às 20:50
A crise habitacional na Alemanha expõe o colapso do aluguel e da moradia acessível em Berlim, com a casa própria virando exceção nacional.. imagem e fonte: Canal Elementar
A crise habitacional na Alemanha expõe o colapso do aluguel e da moradia acessível em Berlim, com a casa própria virando exceção nacional.. imagem e fonte: Canal Elementar
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Como o país que virou referência em moradia acessível entrou em uma espiral de preços, escassez de oferta e decisões públicas que alimentam a própria crise habitacional.

No pós-guerra, a Alemanha reconstruiu cidades inteiras e criou um sistema de aluguel estável, regulado e de longo prazo. Décadas depois, a crise habitacional se tornou um gargalo nacional: falta moradia, o custo disparou e o sonho da casa própria virou exceção. Em grandes centros, como Berlim, a disputa por um apartamento parece um sorteio há anúncios que geram mais de 300 pedidos de visita em um único dia.

A pergunta que não quer calar é simples e urgente: quem rompeu o equilíbrio? Quanto se deixou de construir? Onde a pressão é maior? Por que o Estado e o mercado, juntos, não entregam moradia a tempo e a preço pagável? O que se vê hoje é um sistema que funcionou e, por escolhas cumulativas, deixou de funcionar.

Do modelo ao impasse: como a Alemanha chegou até aqui

A cultura do aluguel na Alemanha nasceu como resposta ao trauma de 1945. Um estudo mostra que cerca de 20% do estoque de moradias estava em ruínas no país, com médias de 45% nas grandes cidades (Würzburg perdeu 89% da área construída; Hamburgo e Wuppertal, 75%).

O Estado apostou em aluguel acessível, contratos longos e padronização mínima o déficit de 5,5 milhões de moradias caiu para menos de 700 mil já em 1956.

Esse arranjo consolidou o aluguel como norma. Enquanto 70% dos europeus vivem em casa própria, a Alemanha e a Suíça fogem à regra; mais de 50% dos alemães alugam em Berlim, cerca de 85%.

Foi uma escolha política que funcionou por décadas. Mas o que era solução, sem novas correções, virou parte do problema.

A virada dos anos 1990–2000: privatização, concentração e financeirização

Com a reunificação e a pressão fiscal, o governo vendeu quase 850 mil moradias públicas a fundos e empresas privadas.

Das 4 milhões de unidades erguidas pelo Estado, só 1 milhão seguiria pública depois. O mercado se concentrou em grandes players como Vonovia, LEG e TAG e a moradia virou ativo financeiro.

O símbolo dessa concentração veio quando a Vonovia comprou 87% da Deutsche Wohnen, criando a maior imobiliária da Europa.

Em um mercado assim, manter imóveis vagos, inflar aluguéis e privilegiar contratos “temporários/mobiliados” (fora dos tetos) passa a ser estratégia.

Resultado: menos oferta efetiva no longo prazo e preço indexado à expectativa de valor, não à renda dos moradores.

Choque de oferta: déficit, canteiros parados e custos fora da curva

Hoje, a Alemanha acumula déficit superior a 800 mil apartamentos. A demanda explodiu (urbanização acelerada e mais de 1 milhão de refugiados ucranianos registrados em 2022), e a oferta não acompanhou.

A meta oficial de 400 mil novas unidades por ano fracassou. As entregas caíram de 306 mil (2020) para 251 mil (2024), pior marca em 14 anos.

Os custos de construção subiram mais de 80% entre 2010 e 2024 de € 1.360/m² para € 2.510/m² e a burocracia alongou prazos: o ciclo da licença à entrega saltou de 20 para 26 meses.

Empresas tradicionais tombaram (a Baumann, com 135 anos, demitiu 1.200 pessoas em 2023). Sem previsibilidade, o capital recua; sem capital, a obra não sobe.

Regulação que promete… e trava: tetos, brechas e curta duração

Berlim tentou congelar aluguéis em 2020; o tribunal constitucional derrubou. O que restou tetos temporários e controles locais não padroniza o país e abre brechas: bastam um armário e uma mesa para classificar como “mobiliado” e escapar do teto. Apartamentos temporários/mobiliados chegam a € 28,85/m², contra € 11,67/m² em contratos convencionais.

Ao mesmo tempo, a expansão de aluguel de curta duração retira estoque do mercado tradicional. É um círculo vicioso: controle mal desenhado desestimula novos projetos, incentiva a conversão para short-stay e, no fim, encarece ainda mais o que sobra.

O custo humano: quando morar vira privilégio

A crise habitacional não é número; é vida. Em Charlottenburg (Berlim), o aluguel já consome mais de 60% da renda média muito acima de qualquer parâmetro saudável.

Casos como o de Amir Schraff (Bonn) exibem despejos por “uso do proprietário” que soam oportunistas; Chris Butler viu seu endereço virar anúncio de Airbnb depois de perder um contrato antigo. “Eles me tiraram de uma casa que eu amava.”

As cidades relatam um “sem-teto invisível”: gente com emprego que dorme em sofá de parente, abrigo ou quartos superlotados.

Em Berlim, a assistência social prevê aumento de 60% no número de pessoas sem moradia até 2029. Os 20% mais pobres já gastam mais de 40% da renda com aluguel, enquanto os mais ricos ficam abaixo de 20%. A régua parte a sociedade ao meio.

Preços em alta, renda pressionada

Entre 2010 e 2022, os aluguéis subiram 50% em cidades médias e até 70% nas grandes. Em Berlim, +40% entre 2016 e 2023. Para 2025, projeções de alta média de 4% a 5% e +6% já no 1º trimestre.

Metade da população de cidades como Düsseldorf, Colônia e Bonn já seria elegível a moradia subsidiada, segundo entidades de inquilinos.

É o Estado socorrendo onde antes o mercado com regras claras dava conta.

Soluções em disputa: expropriar, acelerar, padronizar?

Em 2021, um referendo simbólico em Berlim aprovou (59%) expropriar 240 mil imóveis de grandes fundos.

A prefeitura estima € 38 bilhões em compensações; a Constituição permite estatização com lei e compensação, mas o embate jurídico e fiscal é gigante.

Sem compensação, o precedente assusta o capital; com compensação, o Tesouro não fecha.

No front pró-oferta, o governo lançou o “Bau-Turbo”, prometendo encurtar planejamentos de 5 anos para 2 meses e reduzir travas.

Críticos alertam: o texto não garante moradia acessível e pode repassar custos de reformas (elevadores/adicionais) aos inquilinos.

Regras ESG e urbanísticas complexas seguem travando produtividade num setor que pede construção modular/seriada (à la Dinamarca, com 40% das novas moradias nesse formato). Há propostas a € 14/m², mas sem subsídio, a conta não fecha.

Juros altos desde meados de 2022 derrubaram a demanda por crédito; a classe média saiu da compra, presa entre aluguel caro e financiamento inviável.

Sem comprador e sem investidor, o canteiro não reabre.

O que aprendemos e o que (ainda) falta fazer

Lição 1 — Escala com foco: metas são números, mas obras são processo. Licenciamento ágil, previsível e nacionalmente padronizado é condição para destravar 400 mil unidades/ano. Sem cronograma confiável, o capital não volta.

Lição 2 — Oferta protegida: moradia permanente exige estoque blindado: cooperativas, parque público de aluguel e regulação firme do short-stay para não sugar unidades da residência permanente. Teto sem brecha — e com critério nacional — reduz arbitragem.

Lição 3 — Custo e produtividade: padronização, modularidade e série derrubam preço por m². Subsídio focalizado (na produção, não no preço final) ajuda a fechar modelagem a € 14/m² onde for viável.

Lição 4 — Financiamento anticíclico: juros altos pedem linhas públicas anticíclicas para produção e compra. Sem ponte de crédito, a roda para.

Lição 5 — Proteção sem paralisar: direitos do inquilino e segurança jurídica do investidor não são antagônicos. O inimigo é a ineficiência: burocracia lenta, regras dúbias e brechas que reduzem a oferta.

A crise habitacional alemã não é um raio em céu azul. É o acúmulo de decisões certas para ontem que ficaram erradas para hoje privatização sem rede pública robusta; controles com brechas; licenças lentas; custo alto e produtividade baixa; juros que travam a compra; e um curto prazo que sequestra o longo.

Sem uma agenda combinada de oferta, padrão e financiamento, a “geração sem casa própria” deixa de ser rótulo e vira norma.

E você? Na sua visão, o que destrava mais rápido a crise habitacional: cooperativas e parque público de aluguel ou um choque regulatório de licenciamento e construção modular? Comente qual caminho você acredita que funcionaria melhor e por quê.

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Maria Heloisa Barbosa Borges

Falo sobre construção, mineração, minas brasileiras, petróleo e grandes projetos ferroviários e de engenharia civil. Diariamente escrevo sobre curiosidades do mercado brasileiro.

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