China aprova soja e milho geneticamente modificados pela primeira vez. Decisão histórica pode redefinir o comércio mundial de grãos e desafiar Brasil e EUA.
A decisão do governo chinês de liberar, pela primeira vez em sua história, o cultivo comercial de soja e milho geneticamente modificados marca um divisor de águas na agricultura mundial. Anunciada no fim de dezembro de 2023, a medida aprovou 37 variedades de milho GM e 14 de soja GM, abrindo caminho para que o maior consumidor global de grãos se torne também um produtor em larga escala de transgênicos. Até então, o uso comercial de organismos geneticamente modificados (OGMs) estava limitado a culturas como algodão e mamão, mas agora Pequim deixa claro que sua estratégia agrícola ganhou uma nova dimensão.
O movimento, que pode parecer técnico à primeira vista, tem implicações profundas para a segurança alimentar, a geopolítica global e o comércio internacional de commodities agrícolas. Ao mesmo tempo em que reforça a autossuficiência chinesa, ele ameaça reconfigurar a posição de gigantes exportadores como Brasil, Estados Unidos e Argentina.
A virada estratégica da China com os grãos geneticamente modificados
Por anos, Pequim manteve uma postura cautelosa e até mesmo opaca em relação ao uso de transgênicos, motivada tanto por receios sobre a segurança alimentar quanto pela resistência de parte da população ao consumo desses alimentos.
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Apesar disso, a contradição era clara: o país já importava maciçamente soja e milho transgênicos de outros países para atender à indústria de rações e ao setor alimentício.
Em 2023, essa cautela deu sinais de mudança. O Ministério da Agricultura e Assuntos Rurais da China simplificou processos de aprovação, flexibilizou testes em campo e autorizou programas experimentais que chegaram a cobrir 267 mil hectares de soja e milho GM.
Com a aprovação oficial, Pequim confirma a transição da fase de experimentação para a produção comercial, indicando que o país não pretende mais ficar dependente da oferta externa para sustentar seu consumo interno.
Os pilares da decisão: segurança alimentar e produtividade
Dois pilares explicam a guinada chinesa.
Segurança alimentar e nacional: A China é o maior importador mundial de soja, usada principalmente na produção de ração animal. Essa dependência, em um cenário de tensões comerciais e volatilidade internacional, se tornou um risco estratégico. Ao autorizar o cultivo local de soja e milho GM, Pequim busca reduzir vulnerabilidades e proteger-se de crises de oferta e de oscilações de preços.
Produtividade agrícola: Variedades resistentes a pragas e herbicidas permitem aumentar a eficiência produtiva, reduzindo custos com defensivos e ampliando a competitividade dos agricultores locais. Isso é crucial em um território pressionado pela escassez de terras aráveis, degradação do solo e impactos das mudanças climáticas.
Além disso, a aposta em biotecnologia reforça a modernização do campo, com o governo investindo não apenas em transgênicos, mas também em edição genômica, considerada mais precisa e de ganhos rápidos.
Impactos no comércio internacional de grãos
A entrada da China no cultivo de soja e milho geneticamente modificados tem potencial de alterar significativamente o fluxo global de comércio agrícola.
Atualmente, Brasil, EUA e Argentina dominam a exportação de soja GM, abastecendo boa parte da demanda chinesa. Se Pequim conseguir elevar sua produção interna, a dependência desses fornecedores será reduzida.
Isso pode significar:
- Mudança na demanda externa: exportadores tradicionais podem enfrentar queda nas vendas ou pressão para se reposicionar.
- Efeito nos preços: a autossuficiência chinesa tende a impactar cotações internacionais, com reflexos diretos no agronegócio brasileiro.
- Concorrência geopolítica: ao reduzir importações, a China ganha margem de manobra frente aos EUA, que sempre utilizaram o comércio agrícola como ferramenta de pressão diplomática.
Ao mesmo tempo, o avanço chinês também pode criar novos mercados: exportadores podem passar a vender tecnologias, sementes e insumos especializados, enquanto Pequim se esforça para harmonizar suas normas com padrões internacionais e evitar barreiras comerciais.
Resistência interna e aceitação pública
Apesar do peso estratégico da decisão, há um obstáculo doméstico relevante: a resistência da população chinesa ao consumo de alimentos geneticamente modificados.
Pesquisas indicam que parte significativa da sociedade ainda desconfia dos transgênicos, obrigando o governo a investir em campanhas de literacia científica e em políticas de transparência para convencer consumidores.
Esse é um fator que pode retardar a expansão dos OGMs na mesa do consumidor, mantendo inicialmente o foco no uso de soja e milho transgênicos para ração animal e indústrias processadoras.
Situação atual e próximos passos
O cenário chinês em relação aos OGMs agora pode ser resumido assim:
- Culturas já consolidadas: algodão e mamão transgênicos são amplamente cultivados.
- Novas fronteiras abertas: milho e soja GM receberam autorização oficial, sinalizando uma expansão acelerada.
- Importações mantidas: Pequim continua autorizando a entrada de grãos GM de diversos países, mas já prepara substituição gradual.
- Avanço tecnológico: programas de edição genômica e biotecnologia se expandem, reforçando a estratégia de autonomia.
Um novo capítulo na agricultura global
O fato de a China liberar soja e milho geneticamente modificados em escala comercial não é apenas uma questão agrícola, mas sim geopolítica. O maior importador mundial agora caminha para ser também um dos maiores produtores, mudando a lógica do mercado e pressionando exportadores tradicionais a redefinir suas estratégias.
Para o Brasil, essa decisão é particularmente sensível. Hoje, o país é o principal fornecedor de soja para a China, e uma queda significativa nessa demanda pode impactar diretamente a balança comercial e o agronegócio brasileiro. Ao mesmo tempo, abre-se espaço para negociações mais complexas, que podem incluir tecnologia, cooperação científica e até disputas regulatórias.
Nos próximos anos, o equilíbrio entre inovação tecnológica, aceitação pública e competitividade comercial será determinante para medir o impacto real dessa guinada chinesa. Mas uma coisa já está clara: o passo dado por Pequim tem potencial de redefinir não apenas a agricultura local, mas também a ordem agrícola global.