China bate recorde de exportações de carros usados, mas enfrenta polêmica: veículos zero km estão sendo emplacados como seminovos para inflar vendas. Entenda o impacto dessa prática no comércio global.
Num momento em que o mundo observa atentamente o avanço da indústria automotiva chinesa, um fenômeno curioso — e preocupante — vem chamando a atenção: o crescimento acelerado na exportação de carros usados pela China está sendo acompanhado por denúncias e suspeitas sobre uma prática incomum. Veículos zero quilômetro estariam sendo disfarçados de seminovos para inflar vendas internas e ganhar novos mercados externos, o que levanta dúvidas sobre a transparência do setor e ameaça a imagem internacional do país.
Com cerca de 25 milhões de veículos novos comercializados por ano, a China é disparadamente o maior mercado automotivo do mundo. A rotatividade alta, aliada à rápida obsolescência tecnológica — impulsionada por atualizações constantes, especialmente no segmento de carros elétricos — cria um estoque gigantesco de veículos usados disponíveis para revenda.
Exportações de carros usados da China disparam
De olho nesse excedente, o governo chinês vem promovendo a abertura de canais para exportação de carros usados, como forma de aliviar o mercado interno e gerar receita com ativos depreciados. Os números mostram que o plano tem dado certo: em 2023, foram exportados cerca de 275 mil veículos usados; em 2024, esse número saltou para 436 mil — um crescimento de 58,5% em apenas um ano.
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Mercados como Rússia, África, Ásia Central e América do Sul (onde permitido) têm se mostrado receptivos a esses carros, muitas vezes mais modernos e baratos que os equivalentes europeus ou americanos. Com a infraestrutura logística bem desenvolvida e capacidade industrial de sobra, a China parece estar se tornando o novo grande hub de seminovos do mundo.
Mas há um problema — e ele está no ponto de partida.
Carros zero km com “cara” de usados: o que está acontecendo?
Para entender a polêmica, é preciso conhecer um detalhe da dinâmica comercial chinesa. Para atender metas de vendas e pressionar concorrentes, algumas montadoras estariam emplacando veículos novos apenas para contabilizá-los como vendidos — mesmo que eles nunca tenham sido entregues a um cliente real. Esses carros “ficticiamente usados” ficam parados em pátios ou showrooms por meses — até serem enviados ao exterior com o selo de “carro de segunda mão”.
A prática não apenas infla artificialmente os números do mercado interno, como confunde o cenário de exportação de veículos usados. Países compradores estão começando a se questionar: será que estão mesmo comprando seminovos? Ou estão recebendo veículos tecnicamente novos, porém registrados como usados?
Esse tipo de “maquiagem” pode comprometer a confiabilidade da indústria automotiva chinesa, além de representar riscos fiscais, comerciais e até ambientais nos países de destino.
Governo chinês endurece regras para exportação de veículos
Ciente do risco à sua imagem internacional, o governo chinês decidiu agir. Nos últimos meses, novas normas regulatórias começaram a vigorar, com o objetivo de padronizar o processo de exportação e garantir que apenas veículos verdadeiramente usados — e em boas condições técnicas — deixem o país.
Agora, para cada veículo exportado, é necessário um terceiro tipo de certificação técnica, além de requisitos mais rígidos sobre segurança, emissões e histórico de uso. Veículos com problemas mecânicos, quilometragem manipulada ou documentação irregular estão sendo barrados nos portos de saída.
Além disso, autoridades chinesas querem evitar que o envio de “quase zero km” disfarçados prejudique a confiança de compradores internacionais, especialmente em mercados estratégicos como Oriente Médio, África e Sudeste Asiático.
O estoque de carros novos que alimenta a dúvida
Segundo dados recentes, a China possui cerca de 3,5 milhões de veículos novos em estoque. Parte desses veículos pode estar há meses — ou até anos — sem rodar, aguardando destino. Isso ajuda a alimentar a suspeita de que muitos desses modelos “encalhados” estariam sendo direcionados para exportação sob o rótulo de seminovos, o que levanta questões sobre transparência e ética nas práticas comerciais.
Embora o mercado chinês seja dinâmico e com alto volume de produção, manter estoques tão elevados pode indicar um desequilíbrio entre oferta e demanda, ou mesmo um excesso de confiança das montadoras. O risco, nesse cenário, é tentar corrigir esse desequilíbrio com soluções que, embora criativas, podem minar a credibilidade da cadeia produtiva.
Brasil fora do jogo (por enquanto)
Vale lembrar que a importação de carros usados no Brasil é proibida, exceto em casos muito específicos, como veículos de coleção com mais de 30 anos ou mudança de domicílio. Isso significa que o Brasil, apesar de ser um grande mercado consumidor, não participa diretamente desse novo boom de exportações de carros usados da China.
Ainda assim, o tema é relevante, pois ilustra um movimento mais amplo: a China não quer ser apenas o maior produtor de carros novos do mundo — quer também dominar o mercado de usados, inclusive para seus modelos elétricos e híbridos, que já competem em preço com os de entrada no Brasil e na Europa.
Para um país que almeja liderar a transição energética automotiva, a China não pode se dar ao luxo de perder a confiança de seus parceiros comerciais. Ao mesmo tempo em que busca ampliar seu mercado de exportação, precisa garantir que práticas como o uso indevido de registros e a classificação forçada de carros novos como usados não virem um padrão aceito — nem internamente, nem lá fora.
Mais do que um problema logístico ou fiscal, essa crise de identidade do carro “quase novo” chinês é um problema reputacional. E nesse campo, os prejuízos demoram muito mais para serem revertidos.