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Considerada a primeira construção em estilo medieval no Brasil, a Casa da Torre de Garcia d’Ávila — concluída em 1624, com muralhas e torre de vigia — guarda quase 500 anos de história da colonização portuguesa

Escrito por Fabio Lucas Carvalho
Publicado em 07/10/2025 às 00:19
Com 474 anos, a Casa da Torre de Garcia d’Ávila foi a primeira construção com traços medievais do Brasil e dominou o sertão por séculos.
Com 474 anos, a Casa da Torre de Garcia d’Ávila foi a primeira construção com traços medievais do Brasil e dominou o sertão por séculos.
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Erguida no alto de uma colina na Praia do Forte, a Casa da Torre de Garcia d’Ávila é um dos mais impressionantes legados do Brasil colonial. Com 474 anos, foi a primeira construção com traços medievais das Américas, unindo fortaleza, residência e capela. De suas muralhas de pedra, a família d’Ávila comandou o litoral e o sertão baiano por quase três séculos.

Poucos lugares no Brasil colonial reuniram tanta riqueza, poder e história quanto a Casa da Torre de Garcia d’Ávila, uma imponente fortificação erguida no século XVI no alto de uma colina da atual Praia do Forte, na Bahia.

Construída em pedra e cal, com aparência de castelo europeu e vista privilegiada para o Atlântico, ela abrigou por quase 300 anos uma das famílias mais poderosas do período colonial.

Símbolo do avanço português rumo ao interior, foi centro de um domínio que chegou a cobrir áreas equivalentes a vários estados do Nordeste.

Hoje, em ruínas, permanece como um dos mais importantes marcos da colonização e da arquitetura luso-brasileira.

Fundação e construção do castelo

A história começa em 1549, quando Tomé de Sousa chegou à Bahia para fundar Salvador, acompanhado de um jovem fidalgo português chamado Garcia d’Ávila.

Nomeado almoxarife e feitor da nova cidade, d’Ávila logo se destacou por sua lealdade e capacidade administrativa.

Em 1552, recebeu do governo-geral uma sesmaria de duas léguas e algumas cabeças de gado trazidas de Cabo Verde, dando início à criação bovina na região.

sesmaria era uma forma de concessão de terras usada por Portugal durante o período colonial.

Poucos anos depois, o fidalgo decidiu erguer em suas terras uma casa-forte para proteger o território e servir como residência.

A construção, iniciada por volta de 1551, é considerada a primeira grande edificação civil portuguesa do Brasil.

O conjunto incluía residência, torre de vigia e capela, sendo conhecido inicialmente como Torre Singela de São Pedro.

Sua estrutura de pedra e cal, as ameias e a posição estratégica à beira do mar davam-lhe aspecto de fortificação medieval, um estilo raro no continente americano.

A obra levou décadas para ser concluída. Somente por volta de 1624, já sob o comando de Francisco Dias d’Ávila, neto do fundador, a Casa da Torre alcançou a forma que a tornaria célebre.

As espessas muralhas, os baluartes e a vista ampla do oceano faziam dela um ponto militarmente estratégico e, ao mesmo tempo, um símbolo da prosperidade da família.

No topo da colina, a fortaleza dominava a paisagem e controlava tanto o litoral quanto os sertões próximos.

A dinastia Garcia d’Ávila e o sistema de sesmarias

A fortuna dos d’Ávila nasceu com a terra. Graças às sesmarias concedidas pela Coroa, a família construiu um verdadeiro império rural que se estendia da Bahia até o Piauí.

Em 1563, Garcia d’Ávila recebeu nova concessão de terras — seis léguas de costa por quatorze léguas de profundidade — transformando-se num dos maiores proprietários da colônia.

Quando morreu em 1609, aos 90 anos, deixava um vasto patrimônio que passaria a seu neto Francisco Dias d’Ávila, o primeiro morgado da Casa da Torre.

Francisco ampliou ainda mais o domínio familiar. Em 1624, o rei Felipe IV autorizou-o a “devassar os sertões”, ou seja, conquistar e colonizar terras no interior.

Essa permissão, somada ao poder econômico e à força militar da família, deu origem a uma dinastia quase feudal.

Os Garcia d’Ávila controlavam fazendas, rotas de gado, povoados e até aldeamentos indígenas, expandindo suas posses por séculos.

No auge, o território administrado a partir da Casa da Torre alcançava mais de 260 léguas ao longo do rio São Francisco, segundo registros de 1711 do cronista André João Antonil.

Essa área equivalia a dois estados modernos do Nordeste. Assim, a Casa da Torre se tornou símbolo de um modelo de poder rural autônomo, sustentado por sesmarias, escravidão indígena e criação extensiva de gado — o chamado “feudo dos d’Ávila”.

Um centro econômico e militar decisivo

A Casa da Torre não era apenas residência, mas o coração de um império econômico e militar.

Sua principal fonte de riqueza era a pecuária, atividade introduzida por Garcia d’Ávila e responsável por abastecer engenhos e povoados de carne, couro e animais de tração.

A família criou as primeiras rotas de boiadas do Brasil, conectando o litoral ao sertão e, mais tarde, às áreas mineradoras de Minas Gerais. O famoso “Caminho da Bahia” teve origem em suas fazendas.

O poder econômico sustentava também uma estrutura de defesa. A Casa da Torre, localizada em posição elevada, servia de posto de observação do litoral.

Por meio de sinais de fumaça e tochas, os sentinelas alertavam Salvador sobre a aproximação de navios inimigos.

Essa rede de comunicação foi essencial nas defesas contra corsários franceses no século XVI e contra a invasão holandesa no século XVII.

Francisco Dias d’Ávila participou ativamente da expulsão dos holandeses da Bahia em 1625 e forneceu homens e recursos em novas campanhas até 1640.

O castelo chegou a abrigar um pequeno exército privado, formado por vaqueiros e índios aliados. Esses grupos, além de defender a região, foram usados em expedições de conquista e apresamento de indígenas no interior — prática comum na expansão territorial da época.

Ao longo de três séculos, a Casa da Torre funcionou como quartel, fazenda, fortaleza e centro administrativo.

Nenhuma outra propriedade particular no Brasil colonial exerceu tanto poder territorial. Por isso, estudiosos como Pedro Calmon e Moniz Bandeira chamaram-na de “a sede do primeiro império privado do Brasil”.

Arquitetura: entre o castelo e o engenho

A Casa da Torre impressiona até hoje por sua arquitetura híbrida, misto de fortaleza europeia e solar senhorial tropical.

Erguida com pedra calcária local e cal de conchas, possuía muros de até dois metros de espessura e janelas estreitas, adequadas à defesa.

A planta seguia o modelo das casas-fortes medievais portuguesas, com torre de vigia, pátio interno e dependências residenciais dispostas ao redor.

Integrada ao conjunto, a Capela de Nossa Senhora da Conceição foi construída ainda no século XVI e ampliada no XVII.

Seu formato hexagonal e as portas em cantaria refletem influências do estilo manuelino, e parte da estrutura original ainda se conserva. Era o centro religioso da propriedade, onde a família realizava batismos e missas privadas.

Durante os séculos XVII e XVIII, o conjunto foi sendo ampliado, incorporando alas residenciais e pátios de serviço.

Apesar de assemelhar-se a um castelo, o local também funcionava como engenho de subsistência, com depósitos, senzalas e currais. Essa combinação de casa senhorial, fortaleza e fazenda é o que torna o edifício um exemplar único na América Latina.

No século XIX, com a perda de prestígio da família, a manutenção cessou. Partes do telhado ruíram, e o interior foi saqueado. Hoje restam apenas paredes, arcos e fundações, que, mesmo em ruínas, ainda revelam a grandiosidade da construção original.

Personagens marcantes da linhagem

A história da Casa da Torre se confunde com a de seus donos. Entre os principais personagens destacam-se:

  • Garcia d’Ávila (1528–1609): o fundador, considerado o primeiro grande fazendeiro do Brasil. Chegou à Bahia na comitiva de Tomé de Sousa e introduziu a criação de gado no país.
  • Francisco Dias d’Ávila (c.1575–1641): neto do fundador e primeiro morgado. Foi guerreiro, explorador e administrador, responsável pela consolidação do poder da família e pela expansão de suas terras sertão adentro.
  • Garcia d’Ávila II (1609–1658): continuou a política de alianças e expandiu os domínios, enfrentando missionários jesuítas e competidores como a Casa da Ponte, dos Guedes de Brito.
  • Luís Pires de Carvalho e Albuquerque (Visconde da Torre de Garcia d’Ávila, 1789–1847): descendente direto que apoiou a Independência da Bahia em 1823 e recebeu título de nobreza no Império. Sob sua administração, o poder dos d’Ávila já declinava.

Há também uma figura lendária associada à linhagem: Diogo Álvares Correia, o Caramuru, náufrago português que viveu entre os tupinambás e casou-se com Paraguaçu. Parte da genealogia dos Garcia d’Ávila remonta a ele, unindo o sangue indígena e europeu na origem da família.

Declínio e abandono

O declínio começou no início do século XIX. As mudanças políticas e econômicas após a Independência enfraqueceram as antigas casas senhoriais.

Em 1835, a lei que extinguiu os morgadios acabou com a herança integral dos domínios, fragmentando as propriedades.

Além disso, a crise da lavoura açucareira reduziu as rendas e levou ao abandono progressivo do castelo.

Por volta de 1850, a Casa da Torre estava em ruínas. Partes da estrutura foram desmontadas para reaproveitamento de pedras, e o local foi sendo engolido pela vegetação.

Apesar de ter servido como base para tropas libertadoras durante as guerras de independência da Bahia, nunca mais voltou a ser habitada.

Durante o século XX, as ruínas se tornaram ponto de curiosidade e estudo. Em 1938, o então Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (SPHAN, atual IPHAN) tombou oficialmente o conjunto, reconhecendo seu valor histórico e arquitetônico. Foi um dos primeiros monumentos brasileiros em ruínas a receber proteção federal.

Nos anos 1970 e 1980, equipes do IPHAN e da Universidade Federal da Bahia realizaram escavações arqueológicas e obras de consolidação, evitando desabamentos.

A capela foi restaurada e preserva elementos originais como o altar e a pia batismal. Já o castelo foi mantido como ruína consolidada, sem reconstruções artificiais, respeitando sua autenticidade.

A Casa da Torre hoje

Atualmente, a Casa da Torre integra o Parque Histórico Garcia d’Ávila, mantido pela Fundação Garcia D’Ávila em parceria com o IPHAN.

O espaço abriga um museu interativo que recria, com projeções e maquetes, a história do castelo e da família. Há também exposições sobre arqueologia, escravidão, pecuária e o sistema de sesmarias.

As ruínas estão cercadas por coqueirais e têm vista panorâmica do mar. O cenário combina o passado colonial e o turismo moderno, atraindo visitantes do mundo inteiro.

Concertos, feiras e eventos culturais utilizam o espaço, que hoje simboliza tanto a herança do poder colonial quanto a resistência da memória histórica brasileira.

Mesmo em ruínas, a Casa da Torre continua a inspirar. É um monumento à formação do Brasil, às contradições do período colonial e à persistência da cultura luso-brasileira. Nela convivem o esplendor e a ruína, o luxo e a solidão — marcas de um tempo em que o litoral e o sertão eram governados a partir de uma única torre de pedra, erguida sob o sol da Bahia há quase cinco séculos.

Este artigo foi elaborado com base em informações do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN), da Fundação Garcia D’Ávila, de obras clássicas como História da Casa da Torre (Pedro Calmon, 1958) e O Feudo – A Casa da Torre de Garcia d’Ávila (Luiz Alberto Moniz Bandeira, 2000), além de registros históricos disponíveis em acervos públicos e universitários.

Caso algum leitor identifique imprecisões, omissões ou queira contribuir com novas referências históricas, pode deixar um comentário. Toda colaboração é bem-vinda para manter o conteúdo preciso, atualizado e fiel à memória da Casa da Torre.

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Fabio Lucas Carvalho

Jornalista especializado em uma ampla variedade de temas, como carros, tecnologia, política, indústria naval, geopolítica, energia renovável e economia. Atuo desde 2015 com publicações de destaque em grandes portais de notícias. Minha formação em Gestão em Tecnologia da Informação pela Faculdade de Petrolina (Facape) agrega uma perspectiva técnica única às minhas análises e reportagens. Com mais de 10 mil artigos publicados em veículos de renome, busco sempre trazer informações detalhadas e percepções relevantes para o leitor.

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