Erguida no alto de uma colina na Praia do Forte, a Casa da Torre de Garcia d’Ávila é um dos mais impressionantes legados do Brasil colonial. Com 474 anos, foi a primeira construção com traços medievais das Américas, unindo fortaleza, residência e capela. De suas muralhas de pedra, a família d’Ávila comandou o litoral e o sertão baiano por quase três séculos.
Poucos lugares no Brasil colonial reuniram tanta riqueza, poder e história quanto a Casa da Torre de Garcia d’Ávila, uma imponente fortificação erguida no século XVI no alto de uma colina da atual Praia do Forte, na Bahia.
Construída em pedra e cal, com aparência de castelo europeu e vista privilegiada para o Atlântico, ela abrigou por quase 300 anos uma das famílias mais poderosas do período colonial.
Símbolo do avanço português rumo ao interior, foi centro de um domínio que chegou a cobrir áreas equivalentes a vários estados do Nordeste.
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Hoje, em ruínas, permanece como um dos mais importantes marcos da colonização e da arquitetura luso-brasileira.
Fundação e construção do castelo
A história começa em 1549, quando Tomé de Sousa chegou à Bahia para fundar Salvador, acompanhado de um jovem fidalgo português chamado Garcia d’Ávila.
Nomeado almoxarife e feitor da nova cidade, d’Ávila logo se destacou por sua lealdade e capacidade administrativa.
Em 1552, recebeu do governo-geral uma sesmaria de duas léguas e algumas cabeças de gado trazidas de Cabo Verde, dando início à criação bovina na região.
sesmaria era uma forma de concessão de terras usada por Portugal durante o período colonial.
Poucos anos depois, o fidalgo decidiu erguer em suas terras uma casa-forte para proteger o território e servir como residência.
A construção, iniciada por volta de 1551, é considerada a primeira grande edificação civil portuguesa do Brasil.
O conjunto incluía residência, torre de vigia e capela, sendo conhecido inicialmente como Torre Singela de São Pedro.
Sua estrutura de pedra e cal, as ameias e a posição estratégica à beira do mar davam-lhe aspecto de fortificação medieval, um estilo raro no continente americano.
A obra levou décadas para ser concluída. Somente por volta de 1624, já sob o comando de Francisco Dias d’Ávila, neto do fundador, a Casa da Torre alcançou a forma que a tornaria célebre.
As espessas muralhas, os baluartes e a vista ampla do oceano faziam dela um ponto militarmente estratégico e, ao mesmo tempo, um símbolo da prosperidade da família.
No topo da colina, a fortaleza dominava a paisagem e controlava tanto o litoral quanto os sertões próximos.
A dinastia Garcia d’Ávila e o sistema de sesmarias
A fortuna dos d’Ávila nasceu com a terra. Graças às sesmarias concedidas pela Coroa, a família construiu um verdadeiro império rural que se estendia da Bahia até o Piauí.
Em 1563, Garcia d’Ávila recebeu nova concessão de terras — seis léguas de costa por quatorze léguas de profundidade — transformando-se num dos maiores proprietários da colônia.
Quando morreu em 1609, aos 90 anos, deixava um vasto patrimônio que passaria a seu neto Francisco Dias d’Ávila, o primeiro morgado da Casa da Torre.
Francisco ampliou ainda mais o domínio familiar. Em 1624, o rei Felipe IV autorizou-o a “devassar os sertões”, ou seja, conquistar e colonizar terras no interior.
Essa permissão, somada ao poder econômico e à força militar da família, deu origem a uma dinastia quase feudal.
Os Garcia d’Ávila controlavam fazendas, rotas de gado, povoados e até aldeamentos indígenas, expandindo suas posses por séculos.
No auge, o território administrado a partir da Casa da Torre alcançava mais de 260 léguas ao longo do rio São Francisco, segundo registros de 1711 do cronista André João Antonil.
Essa área equivalia a dois estados modernos do Nordeste. Assim, a Casa da Torre se tornou símbolo de um modelo de poder rural autônomo, sustentado por sesmarias, escravidão indígena e criação extensiva de gado — o chamado “feudo dos d’Ávila”.
Um centro econômico e militar decisivo
A Casa da Torre não era apenas residência, mas o coração de um império econômico e militar.
Sua principal fonte de riqueza era a pecuária, atividade introduzida por Garcia d’Ávila e responsável por abastecer engenhos e povoados de carne, couro e animais de tração.
A família criou as primeiras rotas de boiadas do Brasil, conectando o litoral ao sertão e, mais tarde, às áreas mineradoras de Minas Gerais. O famoso “Caminho da Bahia” teve origem em suas fazendas.
O poder econômico sustentava também uma estrutura de defesa. A Casa da Torre, localizada em posição elevada, servia de posto de observação do litoral.
Por meio de sinais de fumaça e tochas, os sentinelas alertavam Salvador sobre a aproximação de navios inimigos.
Essa rede de comunicação foi essencial nas defesas contra corsários franceses no século XVI e contra a invasão holandesa no século XVII.
Francisco Dias d’Ávila participou ativamente da expulsão dos holandeses da Bahia em 1625 e forneceu homens e recursos em novas campanhas até 1640.
O castelo chegou a abrigar um pequeno exército privado, formado por vaqueiros e índios aliados. Esses grupos, além de defender a região, foram usados em expedições de conquista e apresamento de indígenas no interior — prática comum na expansão territorial da época.
Ao longo de três séculos, a Casa da Torre funcionou como quartel, fazenda, fortaleza e centro administrativo.
Nenhuma outra propriedade particular no Brasil colonial exerceu tanto poder territorial. Por isso, estudiosos como Pedro Calmon e Moniz Bandeira chamaram-na de “a sede do primeiro império privado do Brasil”.
Arquitetura: entre o castelo e o engenho
A Casa da Torre impressiona até hoje por sua arquitetura híbrida, misto de fortaleza europeia e solar senhorial tropical.
Erguida com pedra calcária local e cal de conchas, possuía muros de até dois metros de espessura e janelas estreitas, adequadas à defesa.
A planta seguia o modelo das casas-fortes medievais portuguesas, com torre de vigia, pátio interno e dependências residenciais dispostas ao redor.
Integrada ao conjunto, a Capela de Nossa Senhora da Conceição foi construída ainda no século XVI e ampliada no XVII.
Seu formato hexagonal e as portas em cantaria refletem influências do estilo manuelino, e parte da estrutura original ainda se conserva. Era o centro religioso da propriedade, onde a família realizava batismos e missas privadas.
Durante os séculos XVII e XVIII, o conjunto foi sendo ampliado, incorporando alas residenciais e pátios de serviço.
Apesar de assemelhar-se a um castelo, o local também funcionava como engenho de subsistência, com depósitos, senzalas e currais. Essa combinação de casa senhorial, fortaleza e fazenda é o que torna o edifício um exemplar único na América Latina.
No século XIX, com a perda de prestígio da família, a manutenção cessou. Partes do telhado ruíram, e o interior foi saqueado. Hoje restam apenas paredes, arcos e fundações, que, mesmo em ruínas, ainda revelam a grandiosidade da construção original.
Personagens marcantes da linhagem
A história da Casa da Torre se confunde com a de seus donos. Entre os principais personagens destacam-se:
- Garcia d’Ávila (1528–1609): o fundador, considerado o primeiro grande fazendeiro do Brasil. Chegou à Bahia na comitiva de Tomé de Sousa e introduziu a criação de gado no país.
- Francisco Dias d’Ávila (c.1575–1641): neto do fundador e primeiro morgado. Foi guerreiro, explorador e administrador, responsável pela consolidação do poder da família e pela expansão de suas terras sertão adentro.
- Garcia d’Ávila II (1609–1658): continuou a política de alianças e expandiu os domínios, enfrentando missionários jesuítas e competidores como a Casa da Ponte, dos Guedes de Brito.
- Luís Pires de Carvalho e Albuquerque (Visconde da Torre de Garcia d’Ávila, 1789–1847): descendente direto que apoiou a Independência da Bahia em 1823 e recebeu título de nobreza no Império. Sob sua administração, o poder dos d’Ávila já declinava.
Há também uma figura lendária associada à linhagem: Diogo Álvares Correia, o Caramuru, náufrago português que viveu entre os tupinambás e casou-se com Paraguaçu. Parte da genealogia dos Garcia d’Ávila remonta a ele, unindo o sangue indígena e europeu na origem da família.
Declínio e abandono
O declínio começou no início do século XIX. As mudanças políticas e econômicas após a Independência enfraqueceram as antigas casas senhoriais.
Em 1835, a lei que extinguiu os morgadios acabou com a herança integral dos domínios, fragmentando as propriedades.
Além disso, a crise da lavoura açucareira reduziu as rendas e levou ao abandono progressivo do castelo.
Por volta de 1850, a Casa da Torre estava em ruínas. Partes da estrutura foram desmontadas para reaproveitamento de pedras, e o local foi sendo engolido pela vegetação.
Apesar de ter servido como base para tropas libertadoras durante as guerras de independência da Bahia, nunca mais voltou a ser habitada.
Durante o século XX, as ruínas se tornaram ponto de curiosidade e estudo. Em 1938, o então Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (SPHAN, atual IPHAN) tombou oficialmente o conjunto, reconhecendo seu valor histórico e arquitetônico. Foi um dos primeiros monumentos brasileiros em ruínas a receber proteção federal.
Nos anos 1970 e 1980, equipes do IPHAN e da Universidade Federal da Bahia realizaram escavações arqueológicas e obras de consolidação, evitando desabamentos.
A capela foi restaurada e preserva elementos originais como o altar e a pia batismal. Já o castelo foi mantido como ruína consolidada, sem reconstruções artificiais, respeitando sua autenticidade.
A Casa da Torre hoje
Atualmente, a Casa da Torre integra o Parque Histórico Garcia d’Ávila, mantido pela Fundação Garcia D’Ávila em parceria com o IPHAN.
O espaço abriga um museu interativo que recria, com projeções e maquetes, a história do castelo e da família. Há também exposições sobre arqueologia, escravidão, pecuária e o sistema de sesmarias.
As ruínas estão cercadas por coqueirais e têm vista panorâmica do mar. O cenário combina o passado colonial e o turismo moderno, atraindo visitantes do mundo inteiro.
Concertos, feiras e eventos culturais utilizam o espaço, que hoje simboliza tanto a herança do poder colonial quanto a resistência da memória histórica brasileira.
Mesmo em ruínas, a Casa da Torre continua a inspirar. É um monumento à formação do Brasil, às contradições do período colonial e à persistência da cultura luso-brasileira. Nela convivem o esplendor e a ruína, o luxo e a solidão — marcas de um tempo em que o litoral e o sertão eram governados a partir de uma única torre de pedra, erguida sob o sol da Bahia há quase cinco séculos.
Este artigo foi elaborado com base em informações do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN), da Fundação Garcia D’Ávila, de obras clássicas como História da Casa da Torre (Pedro Calmon, 1958) e O Feudo – A Casa da Torre de Garcia d’Ávila (Luiz Alberto Moniz Bandeira, 2000), além de registros históricos disponíveis em acervos públicos e universitários.
Caso algum leitor identifique imprecisões, omissões ou queira contribuir com novas referências históricas, pode deixar um comentário. Toda colaboração é bem-vinda para manter o conteúdo preciso, atualizado e fiel à memória da Casa da Torre.