Brasil quer construir uma ferrovia até o novo megaporto criado pela China para conectar a América do Sul ao Pacífico, mas Pequim propôs um trecho que ameaça reservas amazônicas
O Brasil e a China voltaram à mesa para discutir um projeto ambicioso: a construção de uma ferrovia que ligue o interior brasileiro ao novo megaporto de Chancay, no Peru. A proposta, de proporções continentais, prevê trilhos cortando o estado do Acre, próximo à fronteira com a Bolívia, e chegando até a costa atlântica na Bahia. Mas um detalhe inicial acendeu o sinal vermelho em Brasília: a primeira proposta chinesa previa um trajeto que cruzava áreas protegidas da floresta amazônica — o que levou o governo brasileiro a rejeitar a ideia prontamente.
A ministra do Planejamento, Simone Tebet, revelou que os chineses haviam sugerido uma rota mais curta, mas que invadiria terras indígenas e reservas ambientais. Segundo ela, o governo não teve dúvidas ao impor um limite claro.
“Eles compreenderam nossas preocupações. Há interesse dos dois lados, mas a Amazônia não é negociável”, declarou Tebet em entrevista recente. A conversa ocorreu às vésperas da visita de Estado do presidente Lula à China, em um momento estratégico da relação bilateral.
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A volta de um sonho logístico adormecido
Não é a primeira vez que o Brasil cogita uma ferrovia cruzando o continente. Durante o segundo mandato de Dilma Rousseff, o plano de ligar o Atlântico ao Pacífico já havia sido apresentado como prioridade estratégica. Na época, a proposta previa trilhos entre o Brasil e o Peru passando por território boliviano, mas os altos custos, a complexidade ambiental e a falta de interesse político adiaram o avanço.
Agora, com a China empenhada em consolidar sua presença na América do Sul por meio de infraestrutura e comércio, o cenário mudou. O país asiático é hoje o maior parceiro comercial do Brasil e está disposto a financiar grandes obras que facilitem o escoamento de grãos, carnes, minérios e derivados de petróleo — produtos que compõem a espinha dorsal das exportações brasileiras.
A ferrovia, se construída, encurtaria o caminho dos produtos do Centro-Oeste e do Norte do Brasil até a Ásia, evitando o congestionado Canal do Panamá e aliviando a dependência do porto de Santos.
Chancay: o porto que a China construiu para dominar o Pacífico sul-americano
O megaporto de Chancay foi inaugurado oficialmente em novembro de 2024 e é considerado o maior projeto portuário da história recente do Peru. A obra, localizada a apenas 75 km de Lima, foi financiada majoritariamente pela Cosco Shipping Ports, braço logístico da estatal chinesa Cosco Shipping, que detém 60% das ações da joint venture responsável pela operação. Os outros 40% pertencem à mineradora peruana Volcan.
Com um espigão principal de 2,7 km de extensão e outro auxiliar de 250 metros, o porto foi projetado para receber navios de grande porte diretamente da Ásia. Desde dezembro de 2024, o terminal opera em fase de testes, com dois navios semanais — e a meta é se tornar o principal hub marítimo do Pacífico sul-americano até 2030.
Essa conexão integra a chamada Nova Rota da Seda, uma estratégia chinesa para dominar fluxos comerciais por meio de investimentos em infraestrutura. O navio COSCO Volga foi o primeiro a ligar diretamente o porto de Nansha, na China, a Chancay, levando mais de 400 contêineres.
Por que o Brasil quer sair do eixo Santos–Atlântico
O porto de Santos é um gigante logístico, mas também um gargalo. Cerca de um terço das exportações brasileiras saem por lá, o que gera sobrecarga, atrasos e custos altos. Em tempos de supersafras, como as registradas em 2022 e 2023, produtores do Mato Grosso, Pará e Goiás enfrentam filas, fretes inflacionados e falta de vagões ou caminhões.
Uma ligação ferroviária até Chancay mudaria esse jogo. Segundo estimativas da Associação Nacional dos Exportadores de Cereais (ANEC), uma ferrovia interoceânica poderia reduzir o tempo de transporte de cargas do Brasil até o sudeste asiático em até 20 dias, além de cortar custos logísticos em cerca de 30%.
“Trata-se de uma revolução silenciosa. O produtor rural será o principal beneficiado, mas isso também abrirá espaço para o Brasil competir com mais força no mercado asiático de commodities”, explicou o analista de comércio exterior Eduardo Lacerda, em entrevista à Agência Brasil.
Questões ambientais e sociais travam o modelo chinês
Apesar do entusiasmo, o governo brasileiro já deixou claro que não aceitará propostas que desrespeitem o meio ambiente ou os direitos das populações tradicionais. A proposta original chinesa, que passava por áreas indígenas e reservas legais na floresta amazônica, foi imediatamente descartada.
Organizações como a WWF-Brasil, o Instituto Socioambiental (ISA) e a Apib (Articulação dos Povos Indígenas do Brasil) alertaram para os riscos de “licenciamento a toque de caixa” e exigiram estudos robustos de impacto ambiental. A pesquisadora do INPA Lívia Moreira lembrou que “o Brasil é signatário da Convenção 169 da OIT e tem o dever legal de garantir o consentimento livre, prévio e informado das comunidades afetadas”.
Essa posição se fortalece com o histórico recente da China em projetos controversos na América Latina, como a hidrelétrica de Coca Codo Sinclair, no Equador, e ferrovias na Argentina com denúncias de impactos mal avaliados.
Chancay já enfrenta polêmicas: areia que some e moradores que protestam
Nem mesmo o recém-inaugurado megaporto de Chancay escapou das controvérsias. Segundo denúncias da associação peruana Freddlich, o avanço das obras gerou degradação do Humedal Santa Rosa e intensa erosão na praia Chorrillos. Vladimir Cantoral, líder da associação, afirmou ao Infobae que a Cosco Shipping descumpriu pontos do Estudo de Impacto Ambiental Modificado (MEIA 2020) e que a situação foi levada ao Ministério Público de Huaral.
“Estamos perdendo nossa costa. O mar está avançando, as praias estão sumindo. Tudo isso por causa de um projeto que não levou a população em conta”, afirmou Cantoral.
Indecopi: megaporto pode não ser competitivo
Outro capítulo da novela envolve a regulação tarifária do porto. O Instituto Nacional de Defesa da Concorrência e da Propriedade Intelectual (Indecopi), equivalente ao CADE no Brasil, concluiu que o megaporto de Chancay não possui condições reais de concorrência. A decisão deu à Autoridade Portuária Nacional o poder de fixar tarifas — o que desagradou a Cosco, que ameaçou ir à Justiça.
Em comunicado oficial, a empresa afirmou que o terminal “promove eficiência logística com estabilidade jurídica e oferece um ambiente competitivo para os usuários do sistema portuário”.
Uma peça-chave na geopolítica regional
Para além da logística, o projeto tem peso geopolítico. A ferrovia Brasil–Peru aliada ao megaporto de Chancay cria uma nova rota de exportação independente dos EUA e do canal do Panamá, desafiando o predomínio das rotas atlânticas.
O professor Lucas Albuquerque, da Universidade de Brasília, alerta: “O Brasil deve analisar esses acordos com cautela. Não podemos simplesmente trocar a dependência de um polo logístico por outro. Precisamos garantir soberania e sustentabilidade.”
A China, por sua vez, enxerga na América do Sul uma oportunidade estratégica para garantir acesso contínuo a alimentos e matérias-primas, além de projetar sua influência no hemisfério ocidental.
E agora?
O que vem pela frente é uma série de etapas técnicas e diplomáticas. Os estudos de viabilidade econômica e ambiental ainda serão aprofundados. O traçado final da ferrovia não está definido, mas a mensagem de Brasília foi clara: qualquer avanço precisa respeitar a floresta, as leis e as pessoas.
Enquanto isso, o Brasil reafirma seu objetivo de crescer no comércio global — mas sem vender a Amazônia no caminho.