Após tarifas comerciais entre EUA e China, exportações de carne americana à China caem a zero e a Austrália assume a liderança global, faturando US$ 6,6 bilhões.
Por anos, os Estados Unidos foram um dos principais fornecedores de carne bovina para o gigantesco mercado chinês. A demanda crescente por proteína animal na segunda maior economia do planeta transformou o comércio entre os dois países em uma engrenagem bilionária do agronegócio global. Até 2018, os embarques norte-americanos para a China movimentavam cerca de US$ 120 milhões por mês, consolidando uma parceria que parecia inabalável.
Mas o que começou como uma relação comercial estável se desfez rapidamente com o acirramento da guerra comercial entre Washington e Pequim. As tarifas impostas pelos EUA sobre produtos chineses geraram retaliações imediatas. Em resposta, a China aumentou drasticamente as tarifas sobre a carne bovina americana, cortando o fluxo comercial e levando o valor das exportações ao país asiático literalmente a zero.
Com o mercado chinês — o maior do mundo em volume de consumo de carne — subitamente em aberto, outro gigante entrou em cena e saiu ganhando: a Austrália.
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A virada australiana que mudou o comércio global
Enquanto os produtores americanos sofriam com estoques acumulados e prejuízos logísticos, os australianos ampliaram suas exportações a um ritmo impressionante. Segundo dados citados pela reportagem da Xataka Brasil, as vendas de carne bovina australiana à China cresceram 65% logo após a imposição das tarifas, atingindo US$ 6,6 bilhões em faturamento.
Em poucos meses, o que era uma disputa comercial entre duas potências acabou redesenhando o mapa da proteína animal global.
A Austrália não apenas preencheu o vácuo deixado pelos Estados Unidos como consolidou-se como o principal fornecedor de carne bovina à China — um posto estratégico para qualquer país que dependa das exportações agrícolas como motor econômico.
Essa guinada não foi um acaso. O setor agropecuário australiano já vinha investindo fortemente em rastreabilidade, sanidade e certificações internacionais, requisitos fundamentais para o mercado chinês, que exige padrões rigorosos de controle de origem e qualidade alimentar.
Com a carne americana fora do jogo, os frigoríficos australianos aumentaram o ritmo de abates, ampliaram contratos de longo prazo e expandiram acordos logísticos com portos e frigoríficos da costa leste chinesa. O resultado foi um crescimento histórico das relações comerciais entre os dois países, beneficiando também toda a cadeia de insumos e transporte marítimo.
Um impacto bilionário para os Estados Unidos
Nos EUA, as consequências foram imediatas. A carne bovina, um dos principais símbolos da agroindústria americana, viu seu acesso ao mercado chinês desaparecer de um mês para o outro. Estimativas da USDA (Departamento de Agricultura dos EUA) apontam que a perda de mercado para a China representou bilhões de dólares em receitas perdidas para o setor de proteína animal entre 2018 e 2020.
A guerra tarifária atingiu produtores de carne em estados tradicionalmente agrícolas, como Texas, Kansas e Nebraska. Para compensar as perdas, o governo norte-americano chegou a anunciar subsídios bilionários para o setor rural, mas a dependência chinesa dificilmente pôde ser substituída.
Enquanto isso, as empresas australianas expandiram contratos, e frigoríficos locais — como JBS Australia, Teys e NH Foods — passaram a liderar o comércio internacional de cortes premium para o mercado asiático.
A China no centro da disputa global pela carne
A estratégia chinesa foi clara: substituir fornecedores americanos por parceiros mais estáveis e politicamente alinhados. Com o aumento da renda per capita e a urbanização acelerada, o consumo de carne bovina na China cresceu cerca de 45% entre 2010 e 2024, segundo dados da FAO.
Para atender à nova demanda sem depender de um único parceiro, Pequim diversificou suas importações. A Austrália tornou-se a principal fonte de carne de alta qualidade, enquanto Brasil e Argentina consolidaram o fornecimento de volumes maiores e de cortes mais acessíveis.
Essa triangulação fez com que, pela primeira vez na história, a Ásia passasse a absorver mais de 60% de toda a carne bovina exportada no mundo. O movimento também alterou a dinâmica dos preços internacionais e pressionou outros mercados a reforçar suas estratégias de exportação.
Efeito colateral: o avanço do Brasil
O Brasil também ganhou terreno durante esse período, embora de forma indireta. Quando a guerra comercial reduziu a oferta americana, frigoríficos brasileiros ampliaram as exportações para a China e Hong Kong, registrando recordes sucessivos.
Em 2023, as exportações brasileiras de carne bovina atingiram 2,2 milhões de toneladas, com quase metade destinada ao mercado chinês, segundo dados da Associação Brasileira das Indústrias Exportadoras de Carne (ABIEC). O faturamento ultrapassou US$ 9 bilhões, e o país consolidou-se como o maior exportador de carne bovina do planeta.
Assim, a disputa EUA–China teve como vencedores não apenas a Austrália, mas também o agronegócio brasileiro, que ampliou sua influência global e fortaleceu relações comerciais com o maior consumidor de proteína animal do mundo.
O papel das tarifas como ferramenta geopolítica
A imposição de tarifas comerciais mostrou, mais uma vez, que o comércio global de alimentos é profundamente sensível à política externa. No caso da carne bovina, um aumento tarifário de poucos pontos percentuais foi suficiente para reconfigurar cadeias inteiras de abastecimento.
Para a China, a medida serviu como instrumento de pressão diplomática e de reposicionamento econômico. Para os EUA, foi um golpe que revelou a vulnerabilidade de um setor dependente da exportação de commodities agrícolas.
Para a Austrália e o Brasil, representou uma oportunidade rara: ocupar o vácuo deixado por um dos maiores exportadores do mundo e expandir a presença em um mercado que movimenta centenas de bilhões de dólares por ano.
O futuro da carne na geopolítica global
Com a recuperação gradual do comércio global pós-pandemia e a estabilização parcial das relações entre EUA e China, há expectativa de retomada das exportações americanas — mas especialistas indicam que o dano estrutural foi feito.
A Austrália, que já tinha um acordo comercial sólido com Pequim, consolidou-se como fornecedora preferencial de cortes premium, enquanto o Brasil domina o fornecimento de carne em volume e preço competitivo.
No longo prazo, a disputa não é apenas sobre tarifas, mas sobre hegemonia alimentar. Controlar o fornecimento de proteína é controlar uma das variáveis mais estratégicas do século XXI: a segurança alimentar de grandes potências.
A nova rota da proteína
A história que começou com tarifas e sanções terminou com uma reconfiguração completa do comércio global. Hoje, quando uma peça de carne é servida em um restaurante de Pequim, ela tem mais chances de ter saído de um frigorífico em Queensland, na Austrália, ou de Mato Grosso do Sul, no Brasil, do que de um rancho americano no Texas.
O mercado, assim como a geopolítica, não tolera vácuos por muito tempo — e quem reage primeiro, vence.