Após duas décadas de negociações, o pacto comercial entre União Europeia e Mercosul chega à fase decisiva de ratificação. A França resiste, agricultores pressionam e os EUA e a China influenciam os cálculos europeus sobre o futuro da parceria.
O acordo comercial entre União Europeia e Mercosul chegou à etapa de ratificação, mais de duas décadas após o lançamento das tratativas.
A Comissão Europeia abriu formalmente o processo no início de setembro, depois de validar o texto concluído em dezembro de 2024, mas o avanço ainda depende de votos no Conselho e no Parlamento Europeu.
As negociações esbarram em pressões do setor agrícola francês e no cenário político em Paris, ao mesmo tempo em que Bruxelas calcula os efeitos do novo ciclo de tarifas dos Estados Unidos e monitora o papel da China na região sul-americana.
-
País vizinho do Brasil investe R$ 5 bilhões em superestrada de 500 km com 50 pontes para cortar rota de 21 dias para 48h e acessar mercado de 20 milhões de brasileiros
-
Petrobras pode usar aeroporto pouco conhecido e transformar cidade em sua nova base aérea estratégica no Brasil
-
EUA não conseguem vender Soja para a China e jogam a culpa no Brasil, enquanto números mostram virada nas compras e apontam o preferido do mercado chinês
-
Qual a diferença do Auxílio Gás para o Gás do Povo, que pretende distribuir 65 milhões de botijões de gás por ano para famílias brasileiras?
Por que o acordo avançou agora
Após a conclusão técnica do tratado no fim de 2024, a Comissão finalizou a revisão jurídica e as traduções e iniciou a articulação política para aprová-lo por maioria qualificada entre os governos do bloco e por maioria simples no Parlamento Europeu.
O objetivo é entregar um marco de integração entre mercados que somam mais de 700 milhões de consumidores.
Esse movimento foi acompanhado de um pacote para acalmar resistências agrícolas, com reforço de monitoramento e salvaguardas em “mercados sensíveis”, desenho pensado sobretudo para atender demandas francesas e de outros países com forte base rural.
França no centro do impasse
A França segue como principal foco de oposição, impulsionada por agricultores que temem competição de commodities do Cone Sul e por partidos que pressionam o Palácio do Eliseu.
Em 9 de setembro, Emmanuel Macron nomeou Sébastien Lecornu como novo primeiro-ministro após a queda do governo anterior, num ambiente de parlamento fragmentado.
A troca adiciona incerteza ao calendário de votação do acordo, ainda que Paris participe das discussões sobre contrapartidas ao campo.
Mesmo entre críticos, há reconhecimento de que mecanismos de proteção e verificação ambiental podem reduzir o custo político da adesão.
Nas últimas semanas, protestos voltaram às estradas e às praças, reacendendo o debate sobre a abertura comercial.
Tarifas dos EUA entram na conta europeia
Enquanto isso, o tarifaço americano reposiciona incentivos de Bruxelas.
Em agosto, Estados Unidos e União Europeia formalizaram um arranjo que prevê tarifa de referência de 15% para a maioria dos bens, junto com a promessa europeia de eliminar tarifas sobre produtos industriais dos EUA e ampliar acesso para itens agrícolas norte-americanos.
O novo desenho, somado ao piso de 10% anunciado por Washington para importações globais, pressiona a UE a diversificar parceiros e a valorizar acordos prontos para sair do papel — como o tratado com o Mercosul.
O presidente Donald Trump também elevou o tom ao defender que a UE imponha tarifas de até 100% sobre importações de China e Índia, jogando mais combustível num ambiente de incerteza.
Essa retórica reforça o cálculo europeu de construir alternativas comerciais estáveis com a América do Sul.
Temor do avanço chinês e a carta sul-americana
A possibilidade de maior protagonismo chinês na América do Sul segue como pano de fundo.
Para diplomatas europeus, um acordo com o Mercosul preserva espaço de influência em cadeias de commodities, minerais estratégicos e compras públicas, além de abrir mercado para bens de maior valor agregado.
Em privado, negociadores reconhecem que uma aceleração da presença chinesa na região elevaria o custo político de travar a ratificação.
No Mercosul, a leitura é similar: ampliar acesso ao mercado europeu diversifica riscos num cenário de protecionismo, reduz volatilidades cambiais ligadas a medidas unilaterais e abre agendas setoriais em serviços, digital e sustentabilidade.
O bloco hoje é formado por Argentina, Brasil, Paraguai, Uruguai e Bolívia — esta última tornou-se membro pleno em julho de 2024, com período de adaptação normativa de até quatro anos.
O que muda na prática para Brasil e vizinhos
Para exportadores agroindustriais do Mercosul, a implementação significaria corte de tarifas e quotas mais previsíveis para carnes, açúcar, etanol, frutas e processados, embora limites e gatilhos de salvaguarda devam continuar a valer para nichos sensíveis na UE.
Indústrias de autopeças, máquinas e químicos enxergam oportunidade em regras de origem mais claras e abertura gradual de compras governamentais.
No Brasil, equipes do governo estimam ganhos em escala e competitividade, com ênfase em cadeias que incorporem padrões ambientais e rastreabilidade exigidos pelos europeus.
A agenda de convergência regulatória e a cooperação para transição energética tendem a ganhar tração se o texto for confirmado entre outubro e dezembro, janelas citadas por negociadores em Bruxelas e capitais do Mercosul.
O que dizem vozes do debate
Em entrevista recente, o professor Roberto Uebel, de Relações Internacionais da ESPM, avaliou que há hoje “uma expectativa muito realista” de aprovação, com salvaguardas aos agricultores europeus e cláusulas que protegem produtores sul-americanos diante de eventuais mudanças de rumo político na UE.
Em sua leitura, “o Mercosul é hoje o grande trunfo para os europeus”, sobretudo num contexto de disputas tarifárias com os EUA e de disputa com a China por influência econômica na região.
No diálogo, o apresentador destacou que “não dá para separar União Europeia e Mercosul sem a França”, lembrando o peso político do campo francês e a crise doméstica que pressiona Macron.
A percepção de ambos é que a equação combina resistência de setores específicos, rearranjos tarifários globais e a necessidade europeia de não ceder espaço na América do Sul.