Prometendo fertilizantes e autonomia energética, o projeto da futura maior mina de urânio do Brasil enfrenta forte resistência de comunidades e cientistas que alertam para riscos de contaminação e falta de água.
No sertão do Ceará, um projeto de mineração de grande escala coloca em rota de colisão duas visões opostas de futuro. De um lado, a promessa de desenvolvimento, autossuficiência em fertilizantes e energia. Do outro, o temor de um desastre ambiental e social. Trata-se do Projeto Santa Quitéria (PSQ), planejado para ser a maior mina de urânio do Brasil, e que hoje é o centro de um intenso debate técnico, jurídico e humano.
Localizado na jazida de Itataia, entre os municípios de Santa Quitéria e Itatira, o empreendimento propõe a exploração de um minério que associa fosfato e urânio. Enquanto seus defensores o veem como um pilar para a soberania nacional, uma ampla frente de oposição, formada por comunidades locais, pesquisadores e instituições públicas, alerta para riscos que consideram inaceitáveis.
O que é o Projeto Santa Quitéria e quem está por trás dele?
O projeto é uma iniciativa do Consórcio Santa Quitéria, uma parceria entre a estatal Indústrias Nucleares do Brasil (INB), que detém os direitos de exploração, e a empresa privada Galvani Fertilizantes. O investimento total previsto é de R$ 2,3 bilhões para a construção de um complexo mineroindustrial.
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A produção anual projetada é de 1,05 milhão de toneladas de fertilizantes fosfatados, 220 mil toneladas de fosfato para ração animal e 2.300 toneladas de concentrado de urânio. O urânio, conhecido como “yellowcake”, seria destinado ao abastecimento das usinas nucleares de Angra dos Reis (RJ).
A disputa pela água, o ponto central do conflito no semiárido
Talvez o ponto mais crítico do projeto seja o uso da água. Em uma região semiárida, onde a segurança hídrica é uma preocupação constante, o projeto prevê um consumo de até 1.036 metros cúbicos de água por hora. Esse volume seria retirado do Açude Edson Queiroz, principal reservatório que abastece a região.
Para as comunidades locais e opositores, essa demanda é insustentável. O volume equivale a 54 caminhões-pipa por hora, uma quantidade que, segundo eles, privatizaria um bem comum e vital para o consumo humano e para a agricultura de subsistência, gerando um conflito iminente pelo recurso.
Os riscos à saúde e ao meio ambiente apontados pela ciência
A crítica mais contundente ao projeto vem da academia. Um parecer técnico-científico produzido por mais de vinte pesquisadores da Universidade Federal do Ceará (UFC), a pedido do Ministério Público, concluiu que o Estudo de Impacto Ambiental (EIA/RIMA) do consórcio contém “omissões e insuficiências” críticas.
O estudo da UFC alerta para riscos de contaminação do ar, do solo e da água por poeira tóxica e metais pesados, além da radioatividade. Os pesquisadores apontam falhas graves na análise, como a falta de um estudo sobre os níveis de radiação já existentes na fauna e flora, o que torna impossível monitorar o impacto futuro do empreendimento.
O histórico da outra mina de urânio do Brasil
A desconfiança em relação às promessas de segurança do consórcio é alimentada pelo histórico da única outra mina de urânio do Brasil em operação, localizada em Caetité, na Bahia, e também administrada pela INB. A experiência baiana, que opera desde o ano 2000, é marcada por denúncias de contaminação e acidentes.
Relatórios de organizações como o Greenpeace, datados de 2008, já apontavam para a contaminação de poços de água por urânio em Caetité. Esse precedente é usado pela oposição para questionar a credibilidade da INB e transformar o debate de uma discussão sobre projeções para uma análise de fatos já ocorridos.
O impasse no licenciamento, uma batalha de laudos e audiências
O licenciamento do Projeto Santa Quitéria é complexo e se arrasta há anos. Em fevereiro de 2019, o IBAMA chegou a arquivar o processo, considerando o projeto ambientalmente inviável, principalmente pela questão da água. No entanto, em 2020, o consórcio apresentou um novo estudo, reiniciando o processo.
Atualmente, o projeto está sob análise do IBAMA para a concessão da Licença Prévia. Em maio de 2024, a Comissão Nacional de Energia Nuclear (CNEN) concedeu uma “Aprovação do Local”, um passo inicial no licenciamento nuclear, mas que não garante a licença ambiental. As audiências públicas, realizadas em março de 2025, foram marcadas por fortes protestos, e a decisão final do IBAMA ainda é aguardada.